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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Creio em Tupã

Escrevo daqui de Tupã, uma cidade no oeste de São Paulo, onde passei a semana ouvindo as pessoas falarem com o delicioso ‘r’ caipira. Talvez o ex-ministro José Dirceu, quando dobra a língua para pronunciar o ‘r’ de seu nome, não saiba que está usando uma língua indígena. Mas está. Esse ‘r’ denominado pelos linguistas de ‘r’ retroflexo, vem de língua do tronco Jê que deixou suas marcas fortes no sotaque do português regional. Ninguém fala assim em Portugal.

José Dirceu, da mesma forma que o ex-governador Orestes Quérrrcia, podem não saber que o ‘r’ deles é dos índios, mas a universidade sabe, porque a Unicamp  já andou pesquisando o assunto.Acontece que os conhecimentos contidos nas teses e dissertações acadêmicas ficam, quase sempre, escondidos do grande público, que não toma conhecimento do inventário sobre as significativas contribuições das culturas indígenas para a formação da identidade brasileira. Afinal, quem somos nós, os brasileiros? Esse foi um dos temas que me trouxe a Tupã, onde se realizou, de 30 de abril a 3 de maio, o primeiro Encontro Paulista sobre Questões Indígenas e Museus e o terceiro  Seminário sobre Museus, Identidades e Patrimônio Cultural, promovido pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE). Fui convidado a trocar figurinhas com índios de várias etnias e com pesquisadores e gestores culturais de todo o Brasil, além de especialistas da Argentina, México, Estados Unidos e Itália.

O que fazer para que o conhecimento produzido pelos centros de pesquisa não fique escondido? Diferentes foros abordam o papel da escola, da universidade, da mídia, do cinema, das igrejas, dos sindicatos nesse processo. Mas aqui, nestes dois eventos, se tratava de  discutir o papel dos museus, incluindo os museus universitários, o que conduz necessariamente a um conjunto de indagações sobre: memória, patrimônio, identidade, formação de coleções etnográficas, conservação e exposição dentro do espaço dos museus, curadoria, políticas públicas, estrutura de organização e funcionamento da instituição, estudo da reação e do comportamento do público.

Poder do Museu
Ficamos sabendo, por exemplo, através de um diagnóstico realizado pelo Sistema Estadual de Museus, (Sisem/SP) que existem 415 museus em São Paulo, entre os quais está o Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuire, em Tupã, que sediou o seminário. Inaugurado em 1966, este museu possui 38 mil peças de diferentes culturas indígenas do Brasil, incluindo objetos da cultura material  dos Kaingang e Krenak, que ainda hoje habitam a região.
 
A cidade de Tupã, fundada em 1929 pelo empresário pernambucano Luiz de Souza Leão em terras que foram tomadas dos índios, escolheu para seu museu histórico o nome da índia Vanuire, que desempenhou papel importante nas relações entre índios e a sociedade regional envolvente. Ela veio do Paraná, mas não se sabe quando, nem exatamente de onde. O que se sabe é que morreu em 1918, na aldeia Kaingang de Icatu, na região de Araçatuba.

Depois de muita violência dos bugreiros contra os índios, Vanuire decidiu pacificar os “brancos”. Conta-se que ela subia num tronco de jequitibá com dez metros de altura, onde permanecia do nascer do dia ao cair da tarde, entoando canções em favor da paz. Desta forma, com a música, ela pacificou os invasores de sua terra: no dia 19 de março de 1912 foi assinado uma espécie de armistício entre os Kaingang e os bugreiros.

O Museu Índia Vanuire incorporou em suas atividades os índios que habitam hoje a região e que compareceram ao evento para tomar conhecimento de experiências de outras partes do Brasil e de outros países. Discutiu-se, por exemplo, os museus indígenas do Ceará, entre os quais o Museu Cacique Sotero dos Índios Canindé, o Museu Maguta, dos Ticuna no Alto Solimões e o Museu Kuahi, dos índios do Oiapoque. Além disso, foram feitos relatos sobre museus comunitários no México e museus etnográficos na Argentina e nos Estados Unidos.

Os índios estão incorporando rapidamente ao seu discurso um conjunto de conceitos – ‘patrimônio’, ‘reserva técnica’, ‘restauração’ e outros que fazem parte da literatura especializada. Eles descobriram o museu e estão aprendendo como fazê-lo. Não está longe o dia em que haverá índios especializados nesta área, com curso universitário, como já ocorre no Canadá.

O conceito de ‘museu’, que vem sendo refinado pelos museólogos, tem sido também discutido pelos índios. Quase todos identificam a instituição como um lugar de conhecimento, de pesquisa, de estudo, de guardiã da memória. No entanto, os índios, agora, não aceitam mais passivamente que os museus construídos por não índios tenham o monopólio do discurso histórico que lhes diz respeito. Querem deixar de ser apenas um objeto musealizável e serem também – eles próprios – agentes organizadores de sua memória.

A exposição do museu Índia Vanuire abre com uma frase do fundador da cidade de Tupã, Luiz de Souza Leão: ‘Creio em Tupã’, de sentido ambíguo, tanto se refere ao município, com seus empreendimentos e seus negócios, como pode também apontar para as culturas indígenas. Quérrrcia já morreu, mas o Dirrrceu, com a graça do bom Deus, está vivo, vivíssimo. Quem sabe se o museu cumprir seu papel informativo, Dirceu descobrirá a origem do ‘r’ caipira e passará a crer em Tupã. Ele e todos nós.


fonte:
http://blogs.d24am.com/taquiprati/2012/05/06/creio-em-tupa/



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