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domingo, 3 de junho de 2012

Grécia: um legado milenar em perigo


RIO - Em nenhum outro país da Europa a crise econômica é tão dramática, e em nenhum outro país do mundo a herança cultural é tão antiga e vasta: o que está em perigo na Grécia é patrimônio mundial. Para além das dificuldades que os novos criadores encaram (leia no quadro abaixo), o legado de milhares de anos está ameaçado, alerta a Associação Grega de Arqueólogos num apelo internacional contra a redução de orçamento, pessoal e condições.

"Em nome da crise econômica global e com o FMI a atuar como Cavalo de Troia, as medidas de austeridade têm minado os serviços públicos", diz o texto. "Nós, os 950 arqueólogos gregos, funcionários públicos ao serviço do Ministério Helênico da Cultura, lutamos contra a destruição tanto da nossa pátria como da nossa herança cultural, devido às políticas ditadas pelo FMI e pela Troika (formada pelo próprio fundo, pela União Europeia e pelo Banco Central Europeu)."

Os arqueólogos dão exemplos de como a segurança tem sido afetada pelos cortes. Em janeiro, um Picasso e um Mondrian foram levados da Galeria Nacional de Atenas: os ladrões entraram pela varanda, durante uma greve de funcionários. Em fevereiro, dezenas de peças "de valor incalculável" foram roubadas de um museu em Olímpia, o lugar original dos Jogos Olímpicos: os ladrões destruíram o alarme e amarraram uma funcionária. Enquanto isso, dezenas de escavações ilegais multiplicaram-se por toda a Grécia, gente em busca de algo valioso para vender. E quem aproveita é o tráfico internacional de arte.

Como Iraque e Afeganistão
"Os povos da Europa partilham o mesmo destino", resumem os arqueólogos. "As mesmas medidas de austeridade que estão a desfazer a Grécia e os seus monumentos vão ser impostas pela Europa. A cultura é o nosso território comum e o nosso destino comum. Resistam!"

O apelo foi lançado em abril, conta ao GLOBO a presidente da associação, Despina Kutsumba, de 38 anos.

- Até agora não tivemos resposta do ministério (Helênico da Cultura e Turismo). Durante dois anos tentamos explicar ao governo que estes cortes levariam ao desastre, mas eles não entenderam nada e continuaram. Depois do roubo de Olímpia decidimos fazer o apelo internacional para os constranger.

Além de mensagens no Facebook, as reações estrangeiras incluem "uma carta de apoio de Jack Lang", ex-ministro francês da Cultura.

- Não pedimos dinheiro, pedimos que pressionem o nosso governo - explica Despina. - De acordo com a constituição, os monumentos são responsabilidade do governo. E agora até a Acrópole e o Museu Arqueológico de Atenas fecham às três da tarde porque não temos guardas. Há tantos turistas, e eles não podem ver as coisas, e não teremos o dinheiro desses bilhetes.

No horário de verão, como o que vigora atualmente museus e sítios arqueológicos na Grécia fechavam às 19h. Até essa hora, a qualquer dia da semana, havia sempre gente em volta do Partenon, o mais célebre monumento da colina da Acrópole.

Enquanto isso, milionários aproveitam a crise.
- Não é verdade que não estejamos a proteger os nossos monumentos, embora o governo diga que os funcionários não fazem o seu trabalho, mas nós, arqueólogos, não nos podemos proteger dos colecionadores ricos que encomendam coisas da Grécia - diz Despina. -Temos a certeza de que o roubo de Olímpia foi uma encomenda de um colecionador privado, porque são coisas muito conhecidas, que não podem ser postas à venda no mercado. Os colecionadores estão a pedir que roubem para eles, como aconteceu no Iraque e no Afeganistão. É um tráfico global. Essas pessoas preferem países com guerras, em profunda crise ou pobres. E agora encontrarão gente desesperada para fazer escavações ilegais para eles. São dezenas de buracos por toda a Grécia, todos os meses, feitos por profissionais e gente sem emprego.

O jornalista Nikolas Zirganos, 53 anos, que investigou o tráfico de antiguidades, confirma:
- Há um grande aumento de escavações ilegais. Depois das Olimpíadas (de 2004), isso diminuiu, mas agora mais e mais pessoas estão desesperadas para encontrar um tesouro.
Durante uma década não houve roubos, mas desde o começo do ano houve vários, incluindo a riquíssima Grécia bizantina.

- É alarmante - diz Nikolas. - Nos mosteiros e nas igrejas, especialmente no norte, estão a roubar o dinheiro que as pessoas doam, afrescos e ícones. Há um colapso dos mecanismos do Estado. E num cenário caótico, que é algo em que ainda assim não acredito, e ninguém quer, pergunto-me se há planos de emergência.

"Enterremos as nossas antiguidades para serem encontradas por arqueólogos no ano 10000, quando os gregos e seus políticos tiverem maior respeito pela História", ironizou recentemente o arqueólogo Michalis Tiverios, de Tessalônica, no norte do país.

Ex-responsável pelo restauro do Partenon, que está a ser feito há décadas com financiamentos internacionais, o perito Manolis Korres diz que a crise ainda não afetou os monumentos principais, e o trabalho dos investigadores prossegue.

- Mas muito disso vai depender da excepcional dedicação de arqueólogos e de todos os que trabalham com antiguidades na Grécia. Continuam a fazer o melhor que podem, apesar das reduções dramáticas no salário e de o trabalho de muitos ter passado a ser feito por poucos.

O GLOBO tentou contactar por e-mail e telefone o Ministério Helênico da Cultura e Turismo, que neste momento tem um responsável interino, mas não obteve resposta. O momento atual é de transição de poder: eleições gerais acontecem no próximo dia 17.

Reportagem publicada no vespertino para tablet O GLOBO A MAIS

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