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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Obras de arte ganham nova regulamentação

Objetivo de menina é legalizar obras e tornar visíveis centenas de peças que estão trancadas em porões



A situação das obras de arte que entraram no Brasil de forma ilegal ou que fazem parte do pagamento de dívidas pela via judicial está prestes a sofrer uma reviravolta. Em Brasília, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) acerta com a Receita Federal os detalhes finais de uma espécie de anistia para peças que não pagaram impostos ao chegar ao país e que hoje integram coleções particulares de forma irregular. Além disso, o Senado se prepara para votar um projeto de lei que determina que todas as obras apreendidas em aduanas, envolvidas com problemas fiscais, que façam parte do pagamento de dívidas ou tenham sido abandonadas por seus proprietários sejam repassadas à União e distribuídas pelo Ibram aos museus do país.

O objetivo das duas medidas é semelhante: esvaziar porões, legalizar obras e tornar visíveis centenas de peças que os brasileiros simplesmente não podem admirar. Entre elas, estariam as que compõem o acervo do banqueiro Salvatore Cacciola, que jazem há exatos dez anos na reserva do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio, sem poder ser expostas, e as do também banqueiro Edemar Cid Ferreira, que estão sob a guarda temporária do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).

"A ideia da regularização é bem simples", adianta ao GLOBO José Nascimento Júnior, presidente do Ibram. "O colecionador vai pagar um imposto mais baixo e, em contrapartida, deverá expor a peça, já regularizada, em público por um certo período. Até o fim deste mês, a Receita vai apresentar o estudo de viabilidade que nós encomendamos em maio. Mas, como esse processo de regularização já ocorreu em outros setores econômicos e interessa a todos, estou tranquilo. Vai dar certo."

Por se tratar de um estudo, a Receita não comenta o assunto. Nascimento, por sua vez, conta que pelo menos 50 “colecionadores de grande porte” já demonstraram o desejo de aderir ao programa. Deles e de todos os outros interessados na regularização fiscal de obras, o Ibram exigirá a comprovação da compra da peça.

"É a única forma de evitar que a iniciativa acabe, sem querer, esquentando (legalizando) obras roubadas", explica.

Ainda segundo Nascimento, para que o projeto entre em vigor, não é necessário submetê-lo ao Congresso:

"Bastaria que a Receita Federal baixasse uma portaria com o aval dos ministérios da Cultura e da Fazenda."

Para isso, o presidente do Ibram trabalha há pelo menos seis meses.

R$ 1 mi gasto com coleção de Cacciola

Enquanto os detalhes dessa “anistia” são costurados, a Comissão de Educação e Cultura do Senado se prepara para analisar o projeto de lei 97/2011, da deputada federal Alice Portugal (PCdoB). O texto, que já passou pela Câmara dos Deputados e tem parecer positivo da Comissão de Justiça e Cidadania do Senado, está a um passo de ser enviado ao Executivo.

Se sancionado pela presidente Dilma Rousseff, destinará aos museus federais os bens de valor artístico, histórico e/ou cultural que já estão sob a guarda de órgãos e entidades da administração pública federal e da Justiça Federal. Ou seja: fixará um caminho onde não existe lei.

"O propósito desse projeto é assegurar o acesso da população às obras de arte apreendidas, que, em geral, se deterioram nos depósitos do Judiciário, do Banco Central e de outros órgãos do governo", explica a deputada, otimista. "Quem vai se insurgir contra um projeto dessa natureza? Só se for alguém disposto a defender interesses de condenados que tiveram arrestadas obras de arte que foram adquiridas sabe-se lá como."

Em miúdos: o projeto de lei de Alice Portugal permite que obras como as do acervo de Salvatore Cacciola, armazenado no MNBA há uma década, sejam incorporadas de uma vez por todas à coleção da casa, e que obras compradas pelo também banqueiro Edemar Cid Ferreira, que estão sob a guarda do MAC-USP, possam ser distribuídas pelo Ibram por outros museus do país e transformadas em catálogos e publicações, por exemplo.

"Hoje o MNBA é fiel depositário de cerca de 80 peças, fruto de sete apreensões da Polícia Federal, da Polícia Civil e da Justiça Federal", conta Mônica Xexéo, diretora do museu carioca. "Isso supõe um ônus imenso com climatização, segurança, técnicos e muito mais. Só com o acervo do Cacciola já gastamos mais de R$ 1 milhão."

Sem poder expor e sem receber nada pela guarda, o museu mantém em sua reserva técnica a pintura sem título de Manabu Mabe que ilustra esta página, desenhos de Milton Dacosta, Antonio Bandeira e Roberto Magalhães, e gravuras de Iberê Camargo e Cicero Dias. Todas compradas por Cacciola, condenado em 2005 por crimes de gestão fraudulenta e desvio de dinheiro público.

'É uma situação inacreditável. Um colecionador jamais poderia deixar suas obras aos cuidados do museu. Teria que ir a um banco e pagar pelo trabalho de manutenção e guarda. Mas uma pessoa com problemas judiciais tem essa estranha vantagem. O museu cuida do acervo dele com dinheiro público, sem poder exibir e, depois, ainda pode vir a ter que devolver tudo para ele", diz Mônica.

Pelas mesmas razões, o MAC-USP também apoia as duas iniciativas que tramitam em Brasília. Há sete anos, a instituição cuida de 1.500 peças do acervo fotográfico do ex-diretor do Banco Santos, condenado por crime contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, crime organizado e formação de quadrilha.

"Por decisão judicial, ao contrário do que ocorre no Rio, podemos fazer exposições com o acervo do Edemar, mas não podemos fazer publicações nem sabemos o destino final desse material. Ele não é nosso", explica Helouise Costa, curadora da instituição. "A dúvida gera uma imensa instabilidade nas pesquisas que são feitas aqui com esse acervo."

Segundo Helouise, entre as peças de Edemar há fotografias de ícones como Cindy Sherman, Thomas Farkas, Cartier-Bresson e Man Ray, material que hoje é alvo de pesquisa de pelo menos dez bolsistas.

"Não existem obras como essas em coleções públicas. Seria muito bom que essas medidas que tramitam em Brasília fossem adiante. Acabaria com essa situação delicada que vivemos: a de sermos obrigados a usar dinheiro público para cuidar de peças que não são nossas e que podem voltar para o domínio privado a qualquer momento. E os bolsistas não temeriam a perda do material de consulta."

O delegado da Polícia Federal Fabio Scliar, titular da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente e ao Patrimônio Histórico (Delemaph), também comemora a movimentação em Brasília:

"Hoje, o destino dessas obras fica ao alvedrio da Justiça. O simples fato de ter gente se preocupando com isso é muito saudável. São bens de valor cultural. Precisam ser fruídos pela sociedade."

Em fevereiro, a PF foi à Argentina para resgatar gravuras originais de Henri Matisse que haviam sido roubadas de bibliotecas brasileiras. O material, avaliado em cerca de US$ 250 mil, está no MNBA desde então. Também não pode ser visto ou exposto.

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