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domingo, 6 de janeiro de 2013

Museus de papel

"A descrição sem imagem vira mera declamação." Datada de 1779, a frase é do professor Christian Gottlob Heyne, especialista em filologia clássica e, desde 1767, responsável pelo primeiro curso de arqueologia da Universidade de Göttingen. Com simplicidade programática, a afirmação resume um manifesto de longo alcance. No século 18 já não se podia enunciar um julgamento artístico nem demonstrá-lo sem o fundamentar em exame visual das obras em análise. Assegurava-se o princípio básico dos métodos científicos de pesquisa e de classificação.
A atitude teórica de Heyne - tornar o saber humano visível graças à ajuda de bem organizado banco de dados - é posta em prática pela estudiosa francesa Elisabeth Décultot. Ela somou o esforço da Biblioteca Nacional de Paris ao do Museu do Louvre a fim de narrar - com imagens gravadas e/ou impressas - a pré-história dos museus públicos. Foi curadora da exposição Musées de Papier - l’Antiquité en Livres (1600-1800), cujo belo, rico e indispensável catálogo se encontra à venda nas boas livrarias. Dele consta ainda um excelente ensaio de Valentin Kockel, Métodos e Modos de Reprodução da Arte e da Arquitetura Clássicas no Século 18.
Se lida retrospectivamente, a afirmação de Heyne destaca o trabalho pioneiro de coleção e de reprodução de imagens levado a cabo pelo antiquário e mecenas italiano Cassiano dal Pozzo (1588-1657). E recupera a importância revolucionária de Cassiano, alicerce na criação da história da arte e da arqueologia como disciplinas acadêmicas. Ao lado do irmão Carlo Antonio, Cassiano dal Pozzo foi o responsável pela circulação em escala europeia de uma história da arte e da ciência narrada pela imagem e não mais só pela palavra.
Séculos antes da descoberta da fotografia, do projeto Mnemosyne, de Aby Warburg, e do Museu imaginário, de André Malraux, o industrioso romano tornou o conhecimento disciplinar da arte e da ciência tributário da alta qualidade das reproduções da Antiguidade, reproduções produzidas sob a forma de desenhos, aquarelas, gravuras, etc. Para conhecer as obras, não era indispensável viajar até as fontes geográficas do saber. Elas viajavam em papel.
Na primeira metade do século 17, os irmãos Dal Pozzo entregaram aos estudiosos europeus as mais de 7 mil planchas que compõem o Museo Cartaceo (Museu de Papel). Objeto híbrido, o Museo Cartaceo concilia imagem e texto, arte e ciência, livro e coleção, já que representa o intento de exteriorizar visualmente todo o conhecimento humano na época em que a invenção e o uso do microscópio e do telescópio são associados às escavações de catacumbas e à descoberta do Novo Mundo com sua fauna e flora desconhecida.
O Museo Cartaceo documenta a arqueologia, a geologia e a arte antiga, a botânica, a ornitologia e a zoologia. E abre espaço para uma sucessão infindável de livros que o complementam e o atualizam. Planchas e mais planchas reproduzirão os primórdios do cristianismo, a produção da Idade Média e anunciarão os primeiros achados etruscos. As planchas dos irmãos Dal Pozzo são hoje accessíveis a toda biblioteca digna do nome (será que existe alguma no Brasil atual?) graças à diligência da Royal Collection (Londres), que as reproduz em livros e os distribui em duas séries de volumes, Antiquities and Architecture Natural History(www.licosa.com/editori/brepols/Cassiano_prospectus.pdf).
À época de Luís XIV, quando as duas Academias Reais da França - a das Artes e a das Ciências - se deram as mãos, a dimensão enciclopédica do Museo Cartaceo foi ampliada. As gravuras de edifícios ou de esculturas, assim como os desenhos de animais e de plantas seguem um novo esquema de apresentação. Dividida em duas partes, cada plancha distingue dois níveis de conhecimento: a parte inferior propõe uma imagem accessível ao leigo (cena de monumento ou de animal no seu próprio ambiente), enquanto a parte superior representa uma forma de saber especializado ou científico (planta arquitetônica de um templo ou o resultado de uma dissecação anatômica).
Às planchas dadas à luz por Cassiano vão suceder as dactiliotecas, que são armários (cabinets) com formato de livro encadernado. Nas gavetas duma dactilioteca colecionavam-se e se expunham pedras gravadas que reproduziam obras notáveis da antiguidade. A mais conhecida e viajada delas é a de Philipp Daniel Lippert (1753), de que se serviram com proveito tanto Goethe (1749-1832) quanto o próprio Heyne, mencionado acima. Sucedem-se ainda as maquetes em cortiça de monumentos clássicos. Justifica-se a preferência pela casca do sobreiro: a cortiça transmite melhor a grandiosidade em ruína que o gesso alvo e liso. Bom exemplo é a maquete em cortiça do templo circular Vesta, em Tivoli.
Ao mesmo tempo em que recuperava o passado recente, a afirmação de Heyne anunciava a vida curta do museu de papel - do livro como lugar privilegiado de coleção e de exibição a todo e qualquer interessado do saber universal. A partir de meados do século 18, as capitais do Ocidente passam a ostentar um edifício público qualificado de Museu. Nele são apresentados os grandes acervos de cada nação.
Na Itália, onde a herança da Antiguidade sobressai na associação dos mercadores e banqueiros com o poder eclesiástico, surgem coleções particulares notáveis, como a que nasce, no século 15, das mãos de Cosme de Médici em Florença. A coleção de Cosme foi desenvolvida pelos seus descendentes até ser requisitada pelo Estado em 1743. Era do interesse que ela se tornasse acessível "ao povo da Toscana e de todas as nações". Fundava-se em Roma o Museu Capitolino. Seguiu-se a inauguração do Museu Britânico em Londres (1759) e do Museu do Louvre em Paris (1793). Em 1818, no Campo de Sant’Anna carioca, abriu-se ao público o Museu Real, hoje Nacional. 

fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,museus-de-papel,980773,0.htm

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