À margem da visão tradicional, os novos museus contam e preservam história das comunidades
Nem
o salão dedicado aos governadores do Estado, as armas, peças de
vestuário do Padre Cícero ou o Bode Ioiô, nem mesmo os antigos artefatos
indígenas do acervo - precioso, diga-se de passagem - do nosso Museu do
Ceará dariam conta das histórias - e suas múltiplas versões - e a
cultura das pequenas comunidades.
O Museu Comunitário do Grande Bom Jardim: FOTO: IGOR GRAZIANO
Na
contramão da historiografia tradicional, experiências de museus
comunitários, alinhados com a relativamente recente e inovadora corrente
da museologia social, resgatam parte deste legado e, assumindo seu
papel político na construção da memória, ajudam as próprias comunidades a
organizar-se e se reconhecer nesta história.
O Ceará desponta
hoje, no Brasil, como a unidade federativa com o maior número de museus
comunitários: são pelo menos 30, metade de um total de 60 registrados.
Criados, organizados e mantidos pelas próprias comunidades, eles estão
reunidos na Rede Cearense de Museus Comunitários e colocam, em conjunto,
o Estado como uma referência na área.
Índios
No
particular contexto cearense, os museus indígenas são pioneiros e
encarados pelas próprias comunidades como importante ferramenta de
organização e luta política por reconhecimento. Os índios cearenses
chegaram a ser decretados extintos pelas autoridades da Província, em
1860, e constantemente tem sua matriz étnica e cultural negada.
"Antes,
nossos guardiães da memória morriam e levavam tudo com eles, não
transmitiam tanto conhecimento e histórias. Hoje, isso está ficando
gravado e a gente repassa aos mais jovens", compara Eraldo Alves, 38
anos, índio da tribo Jenipapo-Kanindé, de Aquiraz, mais conhecido como
Preá. Ele é também um dos guias do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé.
Desde
2009, eles mantém aberto aos visitantes e, especialmente, à própria
comunidade, um acervo que inclui peças, roteiros e histórias. É que,
para este tipo de experiência museológica, a história não é narrada
exclusivamente por um acervo material e o processo de construção do
acervo é um dos pontos chaves. "A gente colocou no museu o que tinha de
mais significativo para mostrar para ao visitante. Mas o nosso museu é
de território, não é apenas o que temos nessa sala. Quando o visitante
vem, a gente quer que ele conheça o que temos, nossa escola indígena, a
Lagoa da Encantada, a praia do índio, as trilhas, a nossa festa do marco
vivo", explica Preá.
Além de trajes tradicionais, panela de
barro, artesanato, fotografias antigas de lideranças, o acervo do museu é
formado pelos espaços e situações identificadas como fontes de
sobrevivência ou locais sagrados, os mitos, os ritos e as histórias da
luta pela terra, por exemplo. Entram aí, inclusive cenas cotidianas e
atividades como o pôr-do-sol na lagoa e a pesca. Tudo identificado como
patrimônio da comunidade e transformados em acervo do museu.
Periferia
Outra
experiência bem sucedida em museologia social está sendo desenvolvida
no Grande Bom Jardim, território formado pelos bairros do Canindezinho,
Siqueira, Bom Jardim, Granja Lisboa e Granja Portugal. Inaugurado em
agosto do ano passado com a mostra "Jardim das Memórias", o Museu
Comunitário do Grande Bom Jardim é uma instituição que surge entre as
ações da Rede de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável do
Grande Bom Jardim.
"A gente entende a memória e a museologia como
ferramentas políticas. Para uma afirmação de identidade política e de
uma identidade territorial. Entendemos isso como estratégia em prol da
comunidade", argumenta Adriano Almeida, consultor do museu e militante
de direitos humanos. O projeto foi contemplado no primeiro edital Pontos
de Memória do Instituto Brasileiro de Museus em 2012.
Articulado
pelo eixo de memória da Rede, foi realizado grande inventário nos cinco
bairros da região, contando com a participação e sugestões das
comunidades. "Identificamos o patrimônio cultural, quais foram e são as
grandes lutas da comunidade - como a duplicação da Avenida Osório de
Paiva, que durou mais de 12 anos, a luta por acesso a rede pública de
saneamento e drenagem, por luz - e os moradores que constituem liderança
nessas lutas; as formas de expressão, os grupos musicais literários,
teatrais; os movimentos e tendências religiosas", ilustra.
O
processo resultou em mais de 50 itens reunidos na exposição para contar
essa história. "Nós entendemos a importância das comunidades pastorais,
em 1980 e 1990, para o bairro, dos terreiros de umbanda e candomblé.
Registramos os ofícios e modos de fazer e saber, da comunidade,
identificando produtores, artesão. Descobrimos famílias que trabalham
com bio-joias, famílias que trabalham trancelim com palha, produção de
artefatos, assessórios com quenga de coco", detalha Adriano sobre o
processo de inventário que incluiu realização de rodas de memória nos
bairros e contou com pesquisadores da própria comunidade.
A
próxima exposição, já está a caminho e terá como tema a criação do
bairro propriamente dita e a forte influência religiosa neste processo.
"Entendemos nosso museu como uma estratégia discursiva de afirmar, de
realizar política afirmativa sobre o território do Grande Bom Jardim.
Nessa perspectiva, a gente trabalha uma identidade territorial", diz
Adriano Almeida.
fonte:
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1302870
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