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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Como os museus podem mudar vidas



Nos dias 9 e 10 de outubro, aconteceu em Cardiff, no País de Gales, a conferência anual da Museums Association (MA), mais antiga associação de museus do mundo. A MA tem como objetivo compartilhar conhecimento, definir padrões éticos e conduzir treinamentos para o desenvolvimento profissional em museus.

A associação possui mais de 5.000 membros individuais, 600 membros institucionais e 250 membros corporativos. Sua conferência tornou-se o maior evento da Europa para profissionais da área de museus e patrimônio e teve como tema neste ano “Museus Mudam Vidas”. Com foco em experiências voltadas para o impacto social dos museus e seu engajamento comunitário, o evento teve como principal palestrante o brasileiro Antônio Vieira, diretor do Museu da Maré.

A diretora adjunta de Artes do British Council Brasil, Lucimara Letelier, acompanhou Vieira e fala, em entrevista ao Cultura e Mercado, sobre alguns dos principais assuntos abordados durante o evento. Entre eles está a participação do público, acessibilidade de portadores de deficiência, códigos de ética e o novo conceito de pop-up museum.

Cultura e Mercado - Hoje em dia o conceito de museu, aquele onde as pessoas iam para ver coisas antigas, mudou muito. A maneira como eles estão sendo geridos também mudou?
Lucimara Letelier - Sim, com certeza. Está mudando. E a forma de gerir tem variações de país para país, de acordo com o contexto de cada local em relação à política publica vigente, ao modelo de sustentação econômica das instituições culturais, à participação maior ou menor da sociedade civil, à legislação que regulamenta o setor e à cultura de gestão do setor ser mais mercadológica ou mais estatizada.

No Brasil, as mudanças na gestão de museus está muito relacionada à implantação do Modelo OS em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. E também à implantação de políticas publicas especificas para museus, que é recente, como as iniciativas do Ibram na esfera federal e das Secretarias de Estado do Rio de Janeiro e São Paulo, que inovaram em diversos aspectos da gestão de museus nos últimos anos. Além disso, o modelo misto que inclui uma relação público-privada implanta indicadores de gestão mais críticos aos museus ao mesmo tempo em que facilita a criação de cargos estáveis, que antes contavam com especialistas apenas como contratados temporariamente por projetos, sem deixar um legado estruturante na administração dos museus a longo prazo. Isso está mudando e vai trazer futuramente um ganho muito grande para os museus, como diversificação de fontes de receita, maior proximidade com seus públicos, maior consistência na sua proposta curatorial e mais legitimidade para lidar e influenciar temáticas contemporâneas que interessam a toda a sociedade e não apenas a segmentos ligados ao setor museológico.

CeM - O Código de Ética da Museums Association acaba de ser alterado para contemplar questões como respeito e integração de comunidades relacionadas a ancestrais indígenas e outras comunidades que devem participar do processo decisório do Museu. Qual a importância desse documento? Ele existe em todos os museus do mundo? De que maneira essa alteração específica pode influenciar os outros?
LL - O Código de Ética do Museums Association britânico foi revisado recentemente para expandir suas premissas originalmente definidas há muito tempo atrás, já que a Associação tem 125 anos, e foi revisto a primeira vez em 2008. Mas a Associação ainda aguarda a aprovação final de seus membros para prosseguir com essa mais recente alteração no código. No Brasil, a Associação Brasileira de Museus talvez não tenha a mesma dimensão do que a Associação de Museus Britânicos representa para o setor até o momento. Por esta razão, entre outras, o setor museológico brasileiro se pauta em códigos de ética estabelecidos por outras instituições, como Secretarias de Cultura dos Estados, o próprio Ibram ou ainda o Icom (Conselho Internacional de Museus), com seu código criado em 1986 e revisado em 2004 (este último dado segundo pesquisa de Claudia Porto).

A importância deste documento é criar uma linha de conduta dos museus que estabeleça um senso comum do que é ou não aceitável nas práticas dos museus em relação a toda a sua atuação. Porém existem temas mais polêmicos que dividem as lideranças de museus entre os mais conservadores e os mais progressistas, que buscam incorporar as dinâmicas contemporâneas que têm maior impacto na sociedade. Podemos citar, por exemplo, a questão da forma como os museus decidem se desfazer de objetos de seus acervos, a questão da privacidade de seus sócios/doadores, a questão de como os objetos sagrados ligados a populações remanescentes de povos indígenas são representados e que acesso seus descendentes podem ter aos objetos, a questão do direito de propriedade do museu sobre os objetos colecionados, entre outras. O Código de Ética passa a ser ainda mais relevante em tempos de crise, em que os museus buscam criar mecanismos de viabilização econômica e, de certa forma, seus acervos e seus ativos como públicos cativados, e até patrimônio, podem vir a ser considerados moeda de troca ou mercadoria para “venda”.

CeM - Um dos assuntos abordados na conferência foi qual a forma de engajamento dos museus com o público hoje. O que tem sido feito nesse sentido? Qual o poder do público no processo de tomada de decisão dos museus?
LL - Antigamente, e ainda hoje em alguns museus, a visão sobre o papel do público era restrita a considerá-lo receptor das ações planejadas, de forma que o público assumiria um papel mais passivo diante da oferta de programas propostos. Essa visão está migrando para um modelo mais participativo, em que o público é convidado a se engajar constantemente com o museu, e isso dinamiza as propostas de atividades, cria novos conteúdos, permite espaços de dialogo e construção cujo resultado está em constante mutação.

É preciso tempo e disponibilidade para recriar o museu a partir do feedback que o público traz. Obviamente que a simples presença do público no museu já é uma forma de interação e diariamente é possível colher feedbacks e percepções que contribuem para a gestão e programação do museu. Mas hoje, mais do que esperar pelos resultados espontâneos da relação com o público, os museus estão criando canais explícitos de participação que antecipam tendências, ampliam a intimidade dos públicos com o museu, criam uma relação afetiva e até de confiança e de compromisso com a causa do museu sem precedentes. Mas não é sem desafio, sem percalços, sem riscos. As formas (e também os limites) de engajamento são dadas por cada museu e o aprendizado se dá conjuntamente à medida que avançam juntos.

Um exemplo brasileiro é o MAR, Museu de Arte do Rio, com seu programa “Vizinhos do MAR”, abrindo formas diversas de participação que valorizam as atividades tradicionais dos moradores do entorno do museu, possibilitam a inclusão das pessoas como visitantes assíduos a partir da gratuidade e interação permitindo um conhecimento mais aprofundado das atividades do museu e ainda integrando projetos realizados em conjunto. Outro caso é do Horniman Museum, em Londres, que criou um painel de jovens que se reúne voluntariamente uma vez por semana para, junto com o museu, repensar sua interação com o público jovem da comunidade e da cidade. Juntos, os jovens revisam de que forma os programas e temas tratados pelo museu se relacionam com a realidade desse público, que tem entre 14 e 19 anos e enxerga no museu um canal de expressão e reflexão sobre sua identidade e integração com temas contemporâneos que os impactam.

CeM - Como museus, de maneira geral, estão lidando com a questão da acessibilidade para público e artistas portadores de deficiência? Houve avanço nos últimos anos?
LL - Nos últimos anos, os museus começaram a desenvolver programas que permitem que públicos portadores de deficiência física tenham acesso ao conteúdo expositivo de forma adaptada às suas necessidades especiais. E há muito progresso nesta área. Além disso, os museus iniciaram sua adaptação estrutural para receber esse público. Um dos projetos representativos e bem sucedidos é o da Pinacoteca de São Paulo, com sua “Galeria Tátil”, com esculturas que podem ser tocadas, piso tátil, áudio-guia específico, folder em dupla leitura (tinta e Braille), entre outros recursos utilizados. Mas o debate mais atual na questão da acessibilidade, e que foi tratado na Conferência, é de que os museus ainda precisam se modernizar para incluir os artistas deficientes em suas programações. Eles se queixam de que ainda não são consultados para criar junto com o museu uma visão mais ampla e estratégica sobre o que é ser acessível e como eles podem contribuir para o desenvolvimento dos museus nesta direção.

Os museus não tem suas equipes, seus fornecedores, seus espaços preparados para trabalhar com artistas e produtores culturais deficientes que têm muito a contribuir para criação de programas para quaisquer públicos (deficientes ou não). Um dos maiores pensadores e influenciadores desse tema no momento é Mat Fraiser, artista britânico de artes de performance que possui a chamada Síndrome de Talidomida e que se tornou ativista dos direitos dos artistas deficientes. Fraiser propõe uma revisão acerca da forma como os museus vêm historicamente representando a deficiência física em seus objetos, coleções e atividades. E como essa forma está obsoleta, não está conectada à visão contemporânea dos deficientes na sociedade e reforça preconceitos, ampliando barreiras ao invés de reduzi-las ou gerar reflexões para a mudança. Fraiser foi recentemente convidado a prestar consultoria para três museus londrinos revendo suas coleções que retratam a deficiência e refletir com eles formas de avançar.

CeM - O que é o conceito de pop-up museum? É algo que deve crescer? Quais as principais experiências que já existem nesse sentido?
LL - O pop-up museum é definido como a presença do museu temporariamente em um espaço fora do seu espaço físico principal. É um conceito mutante porque é utilizado de forma abrangente, incluindo novas situações, como museus que vão até as comunidades com objetos da coleção principal para dialogar com a população em praças, áreas de convívio onde as pessoas tenham maior capacidade de interagir com os objetos fora do ambiente “solene” dos museus. Também é utilizado para museus constituídos por objetos trazidos por pessoas físicas que se relacionam com o museu. Tende a crescer no sentido de que propõe uma forma não tradicional de museu e é mais flexível na sua proposta de empoderamento do público em relação às decisões curatoriais. E porque pretende levar o museu onde o público está e partir da perspectiva do publico, e não o contrário. O centro focal é o contexto, o cotidiano das pessoas. E o museu se adapta e interage com isso, e não o contrário.

O Museu MONA (Museum Of New Art), em Detroit, é considerado um dos primeiros exemplos de pop-up museum. Mas hoje vários museus têm programas para ter seus “braços pop-ups”, com mobilidade territorial e flexibilidade programática. Os pop-ups possibilitam aprendizados sobre como o museu pode ampliar as relações entre os públicos e suas coleções de uma forma dinâmica e não controlada, ou seja, os inputs destas experiências alimentam as equipes dos museus sobre rumos que vão tomar em diversas áreas estratégicas. Dois museus fizeram parceria este ano para criarem juntos um pop-up museum: o National Museum Wales e o Cardiff Story Museum. Eles criaram um museu pop-up, ainda em construção, mas que já realizou uma exposição temporária baseada no que as pessoas trouxeram de referências individuais sobre a cidade de Cardiff, como objetos, vídeos e fotos.

fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti http://www.culturaemercado.com.br/gestao/como-os-museus-podem-mudar-vidas/ 
Enviado por Mônica Herculano  - DESTAQUE ,ENTREVISTAS ,GESTÃO


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