Ouvir o texto...

domingo, 7 de setembro de 2014

Entrar num museu e tirar uma selfie: um novo olhar sobre o objecto artístico

Quando a National Gallery deixou de proibir fotografias nos museus, alguns visitantes escandalizaram-se. Nos museus portugueses, máquinas fotográficas, telemóveis e tablets são frequentes: uma nova maneira de nos ligarmos à arte. 

Enquanto estamos num museu – em qualquer museu – há outro museu a acontecer nas redes sociais: mais pessoal e em constante actualização. Na galeria física tiram-se fotografias às paredes com telemóveis e tablets e com esses mesmos aparelhos elas vão parar aos feeds do facebook, do instagram ou do twitter – umas vezes mostra-se só a pintura, outras está alguém ao lado como se dissesse “eu estou aqui”. A National Gallery de Londres é um dos últimos grandes museus a acabar com a proibição de fotografar – as vozes mais críticas dizem que é o fim de um dos grandes templos de contemplação da arte e que nasceu uma central de selfies.

Quando em Julho a National Gallery passou a permitir fotografias, começou também a oferecer uma rede wi-fi aos seus visitantes para que “partilhem as suas experiências com amigos e família através das redes sociais”, escreveu Nicholas Penny, director do museu, num comunicado de imprensa. Fê-lo sem anúncio prévio: apenas começou a deixar que se tirassem fotografias, desde que sem flash. Bastou para que se instalasse a polémica.

“Tenho que dizer que um pouco da minha alma morreu de cada vez que alguém fotografava uma obra ou, pior, tirava uma selfie sem sequer ver a peça com os seus próprios olhos”, escreveu um visitante da National Gallery, que tem seis milhões de visitantes por ano, numa carta ao blogue Art History News. Michael Savage, autor do blogue Grumpy Art Historian, escreveu que a colecção de pintura que tem obras como A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci, Vénus e Marte, de Botticelli ou Os Girassóis, de Van Gogh, se ia tornar numa “central de selfies”.



A proibição é neste momento uma raridade pelos museus do mundo – das grandes e importantes colecções resistem o Prado de Madrid e os Uffizi de Florença. A editora do jornal Telegraph lembrou a propósito do assunto uma visita que fez ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA): ao entrar no piso onde estão expostos Picasso, Matisse e os mestres do expressionismo abstracto, voltou para trás porque o espaço estava lotado de fotógrafos. “Era impossível parar, pensar e olhar para uma pintura no meio da multidão que se acotovelava”, conta Sarah Crompton. “Não é um caminho para tornar a arte mais popular e acessível. Mas é de certeza uma maneira de lhe tirar todo o seu propósito e significado. A National Gallery devia ter lutado contra esta tendência”, conclui, fazendo referência aos grandes museus em que é permitido fotografar – Louvre, Metropolitan, Rijksmuseum ou Hermitage.

Estas opiniões mais críticas dizem que a sede de fotografar nos está a impedir de contemplar e usufruir da arte. Não estão só em causa os incómodos ruídos das fotografias e das massas de gente à frente das pinturas. Estudos feitos no Louvre revelam que os seus visitantes olham em média 15 segundos para a Mona Lisa, e o Metropolitan de Nova Iorque diz que cada pessoa gasta 32,5 segundos em cada uma das suas obras. O crítico de arte Robert Hughes dizia que as pessoas hoje não vão aos museus para olhar para as obras, mas para as ter visto.

No Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a política é semelhante à da National Gallery: pode fotografar-se as exposições e usufruir de uma rede wi-fi de acesso gratuito há quase dois anos – uma decisão que quis possibilitar aos visitantes um rápido acesso à informação, diz Elisabete Caramelo, responsável pela comunicação da Gulbenkian. “Não há mais entradas por causa disso, mas há mais coisas partilhadas [nas redes sociais]. Vai-se a um museu com uma disposição diferente”, diz.

Elisabete Caramelo admite que fotografar nas exposições pode criar situações desconfortáveis, mas a Gulbenkian nunca recebeu nenhuma reclamação relativa a isso. “Por exemplo, não temos, códigos QR no museu por causa do barulho que podem fazer ao ser descarregados”, explica. “As pessoas podem deixar de contemplar, mas é uma escolha sua. O museu não pode decidir isso”, conclui.

Filipe Braga “discorda completamente” das opiniões pessimistas. O fotógrafo da Fundação Serralves, no Porto, passa muito tempo nas exposições para fotografar as obras e acaba por observar a maneira como os visitantes se movem naquele espaço. “Há pessoas que é só olhar e fotografar. Olham através da máquina. O interesse se calhar é mostrar no facebook. Mas penso que há mais a contemplar”, diz. Serralves também tem uma rede de wi-fi para uso dos visitantes.

A sua visão optimista não se deve só às horas que passa nas salas de exposição à procura do ângulo e do momento certo para disparar, quando o público desimpede o espaço à frente da obra. Filipe Braga tem dado nos últimos tempos workshops em Serralves sobre fotografia para leigos: já ensinou a fotografar com smartphones, a fotografar obras de arte, e deu aulas sobre como fotografar no museu, o que mostra a tendência da câmara fotográfica em punho.

Aqueles que se inscreveram nas suas aulas “queriam chegar a um museu e levar uma fotografia de uma obra que admiravam ou do espaço arquitectónico, mas não tinham recursos técnicos para o fazer”, diz, explicando que ensina a fotografar sem os aparatos de um fotógrafo profissional. Para chegar à boa fotografia, é preciso esperar e dar tempo à observação, o contrário dos 15 segundos para a Mona Lisa. “Dizia às pessoas para irem fotografar pelo museu durante uma hora e que só podiam trazer 10 fotografias. É muito difícil: hoje tiramos dez fotografias num minuto”, conta. O segredo era “criar uma relação com a obra”, mover-se em torno dela. “Incentivo as pessoas a observar primeiro e só depois fotografar.”

A maioria das pessoas que fizeram os workshops com Filipe Braga dizem-lhe que se sentem motivadas a visitar mais museus para os fotografar, o que neste caso quer dizer tirar algum tempo para cada obra.

“A ideia não é que se traga uma recordação turística, mas sim uma recordação artística”, diz Elizabete Caramelo. Aquilo que observa das publicações que são feitas nas redes sociais com fotografias da Gulbenkian – no instagram há mais de seis mil com a hashtag Gulbenkian – é que são “uma forma de as pessoas estarem mais ligadas ao museu, de ficarem a fazer parte dele e de o recordarem”. O resultado, diz, é a produção e difusão de um novo “olhar artístico sobre o objecto artístico”.

Esta produção de conteúdos é um dos objectos de estudo do filósofo Lawrence Lessing, da Universidade de Harvard, que explica que a cultura actual é de read/write (ler/escrever) ao contrário da cultura anterior às redes sociais – read-only (apenas ler). A justificação está na produção individual e constante de informação que as redes sociais possibilitam.

Assim, na Gulbenkian vai-se compondo um top das obras com mais difusão na internet e lá está Figura de Velho, de Rembrandt, que quando foi pintado no século XVI não podia adivinhar o moderno conceito de selfie. Pelo contrário, Jeppe Hein, o autor de Cage and Mirror, parece ter noção desta nova relação do espectador com a arte: na sua gigante gaiola, os visitantes da Gulbenkian podem entrar e ver-se ao espelho que está lá dentro para isso mesmo. Muitos tiram a sua selfie contra o espelho – Cage and Mirror está também nas mais partilhadas.

Na National Gallery, a direcção do museu não parece estar preocupada com as fotografias aos seus Rembrandts: “Queremos sempre que as pessoas se concentrem numa só obra, mas nós temos seis milhões de visitantes por ano, e provavelmente há seis milhões de maneiras de olhar para a arte. Temos que nos lembrar que as outras pessoas podem não usufruir dela da mesma maneira que nós”, explicou ao PÚBLICO a directora do departamento de comunicação, Susan Foister.

Os mais críticos podem, no entanto, ficar descansados. Zoe Williams, jornalista do Guardian, foi a este museu e assegura: “Não havia ninguém a tirar fotografias na National Gallery na quinta-feira; ninguém, tirando eu.”

  http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/entrar-num-museu-e-tirar-uma-selfie-um-novo-olhar-sobre-o-objecto-artistico-1668095#/0