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quarta-feira, 8 de julho de 2015

série 3/5 - História e cinema: os filmes de Mazzaropi como fonte histórica

MAZZAROPI E O “CAIPIRÊS”
Inserida no contexto da colonização, a língua portuguesa no Brasil passa a ser obrigatória apenas em meados do século XVIII, após a determinação do Marquês de Pombal, que recomendava o seu uso, a fim de preservar o poder hegemônico sobre as colônias, evitando a indigenização linguística e cultural dos colonizadores (TROUCHE, 2000). Devido à vasta e complexa formação do território nacional, o surgimento de infinitos dialetos e variações do português foi uma realidade desde o início da colonização. Estes fatores podem ser notados atualmente em regiões, geográfica e culturalmente, mais fechadas, como o caso do interior do estado de São Paulo, território cultural de referência dos filmes de Mazzaropi. 



O contexto de ocupação desta área é determinante para a construção do dialeto empregado nas comunidades caipiras da região. Segundo Amaral (1976), o dialeto caipira é resultante do processo de expansão bandeirante. A aproximação com o nativo e posteriormente a influência africana geraram diversas modificações na pronúncia, gramaticalização e significados, assim como o surgimento de novas palavras e expressões linguísticas.

Neste contexto, devido ao conservadorismo da sociedade caipira de modelo fechado, tais variações se enraizaram e persistiram às tentativas de normatização e organização da língua portuguesa no Brasil.

O linguista Mario Eduardo Viaro questiona a abrangência desta influência, segundo ele, “muitas pronúncias que pensaríamos ser típicas dos caipiras e matutos, ainda eram correntes em Portugal no começo do século XX” (VIARO, 2009). Assim, a influência do português arcaico na construção do dialeto caipira seria consideravelmente maior do que o observado por outros teóricos da língua
portuguesa.

A observação do dialeto caipira, inserido no contexto linguístico hierarquizado, que privilegia a norma culta e o padrão escrito, revela a visão estereotipada e preconceituosa com a qual é referenciada a cultura caipira como um todo: O português rural ou dialeto caipira (como é mais conhecido) é uma variedade que está à margem do processo empregado na constituição da norma culta padrão atual, ou seja, é basicamente de cunho oral, colocando-se a distância da rigidez do código escrito, e, por esse motivo, tem sido considerada uma variedade de menor prestígio social, sendo utilizada por estratos sociais menos privilegiados (PIRES, 2008, p 302).

Neste contexto, a linguagem urbana ensinada nas escolas e adotada como oficial configurou o padrão culto a ser seguido, o que desqualifica o falar caipira e seu processo de construção. Segundo Silva “a cidade tornou-se sede da língua padrão e esta critério de distinção e ascensão social. [...] A vida urbana passou a ser retratada como superior em riqueza e progresso” (SILVA, 1999, p 243). Estes fatores acentuam a dicotomia rural/urbano, acrescentando em mais este aspecto (linguagem) a tentativa intermitente de imposição da realidade urbana no meio rural.

O preconceito em relação à cultura popular, neste caso a cultura caipira, é tão arraigado no sentido de enaltecer o que é denominado culto que vai além da questão linguística. Em relação à dicotomia rural/urbano, tema freqüente na filmografia de Mazzaropi, o uso da linguagem como meio de revelar as diferenças entre as culturas é marcante. A recorrente divisão social apresentava personagens das classes mais altas que possuíam uma linguagem mais polida, inseridos muitas vezes em um contexto de dominação e exploração do trabalho e da ingenuidade do personagem caipira.

Em filmes de referência como Jeca Tatu (1959) a divisão de classes é muito clara no contexto do meio rural e torna-se mais evidente no momento em que Jeca parte para a capital a fim de negociar votos com o candidato a deputado. Ao observar mais atentamente a obra de Mazzaropi, que também fora alvo de preconceito por parte da crítica, e ao inseri-la em uma abordagem histórica, social e cultural, destaca-se o quanto essa obra tem a oferecer para a compreensão crítica do processo de construção cultural das relações sociais brasileiras.

A necessidade do cineasta em distinguir perante os espectadores as marcas que separam os elementos rurais dos urbanos, evidencia a percepção do preconceito  social quanto aos portadores de uma cultura considerada arcaica e superada. Embora complexo, pois permeado por estruturas herdadas do português arcaico, o falar caipira remetia a valores e expressões consideradas inadequadas a modernização da sociedade brasileira.

Mazzaropi explora esse conflito com habilidade ao demonstrar como a urbanização constituía, sob um verniz de inovação, a repetição do conservadorismo pertinente à elite cultural brasileira. O deslocamento de milhões de brasileiros para as cidades foi acompanhado da rejeição dos seus valores por parte da elite que auferiu benefícios com a modernização, pautada em novas formas de extração da renda do trabalho. Mazzaropi não foi um crítico engajado da modernização conservadora (ORTIZ, 1991) da sociedade brasileira, mas detectava suas contradições e as incorporava a sua obra no intuito de atrais as pessoas participantes deste processo.

Por meio da observação da obra de Mazzaropi, a questão da linguagem apresenta-se claramente como fator de identificação da cultura caipira em sua filmografia. Segundo Linhares (2004) “entre vários elementos que fazem parte da cultura caipira, a linguagem é, seguramente, uma das mais marcantes na identificação do caipira como tal”. Ao incorporar seu Jeca, Mazzaropi lança mão deste requisito na composição do personagem, o que vai muito além de uma mera caracterização, pois a identificação do público com o personagem atinge um novo significado através do reconhecimento da língua e da linguagem do caipira como um todo: sotaques, pronúncias, caracterizações e trejeitos. 

Em “O Jeca e A Freira” (1967), a composição do personagem realizada por Mazzaropi atinge uma grande veracidade que compreende desde a língua, ponto forte da filmografia de Mazzaropi, até mesmo o trabalho de corpo, a composição do figurino e da ambientação, elementos que permeiam o enredo e se revelam mais verossímeis nas práticas do cotidiano representadas, no manuseio das ferramentas, no asseio.

O “caipirês” usado por Mazzaropi possivelmente soaria engraçado a ouvidos menos acostumados com tais pronúncias, porém, para a maioria do seu público a adoção do dialeto contribuía para uma ligação afetiva com o personagem e ao falar a mesma língua do público, Mazzaropi se inseria de maneira mais profunda na realidade que buscava retratar.


fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
produção bibliográfica de Giselle Gubernikoff

continuação: dia 10/07/2015 as 12:00hs série 4/5 

Giselle Gubernikoff
Possui o 1o. Ano de Jornalismo pela Fundação Armando Álvares Penteado (1971), graduação em Artes/Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1976), mestre em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1985), doutora em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1992), livre-docência em Ciências da Comunicação/ Publicidade pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo(2000). Professora Titular pela ECA USP em Artes Visuais/Multimídia e Intermídia na especialização Fotografia, Cinema e Vídeo (2002). Atualmente é professora titular do Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Audiovisual/ Cinema, com ênfase em Produção, Roteiro e Direção Cinematográficos, atuando principalmente nos seguintes temas: mídias digitais e novas tecnologias de comunicação, linguagem cinematográfica, produção audiovisual, cinema publicitário, representação feminina, cinema brasileiro, cinema e consciência cultural e museologia e mídias digitais.
(Texto informado pelo autor)

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