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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Bixiga, onde a criatividade faz a diferença



Publicado por admin - Sunday, 19 August 2012
CIDADE
O Centro de Preservação Cultural (CPC) da USP realiza um levantamento dos artesãos e artistas do bairro do Bixiga, na região central de São Paulo. Em uma exposição e site apresenta, a partir desta próxima quinta-feira, dia 23, os resultados da pesquisa organizada a partir de diversas oficinas. Atividades em que moradores e comerciantes revelam um lugar bom para se encontrar, passear, comer, sambar, trabalhar e viver
LEILA KIYOMURA
Quando Rafaelli Franciulli, italiano de Castelabatti, veio para o Brasil, no final do século 19, ele só tinha uma certeza. Queria morar no Bixiga, onde os patrícios se reuniam. O imigrante chegou num dia, começou a trabalhar no outro. Era mecânico. E dos bons. Ficou meses esperando pelos fregueses. Mas como consertar carro em uma cidade que mal tinha carro? Pensou num dia. E no outro decidiu: “Vou ser padeiro”. Era o ofício que aprendeu desde menino. E assim foi.
Antes de o sol nascer, o cheiro bom do pão típico da Campânia acordou o bairro. O povo fez fila para experimentar. Foi assim que, no dia 14 de julho de 1897, a padaria mais antiga da região começou a crescer. O pão de linguiça ficou tão famoso que a padaria deu nome à rua: 14 de Julho. É essa história que o neto e atual dono, Alexandre Franciulli, um fiel palmeirense, mais conhecido por Gile, conta com orgulho.
Como o avô, ele cresceu amassando pão. E partilha esse aprendizado com a cidade. Gente de longe vem buscar o patrimônio da família. Disputam o crustilli, um biscoitinho retorcido com açúcar e canela, e também a pastiera di grano, uma torta de ricota macia, com frutas cristalizadas. A sede da padaria 14 de Julho também é tombada. Foi uma das primeiras construções da região, de meados de 1800.
É esse cotidiano de um bairro que nasceu italiano e hoje reúne portugueses, japoneses e brasileiros de Minas, Sergipe, Rio de Janeiro, Bahia e também os paulistanos da gema que o Centro de Preservação Cultural (CPC) da USP está apresentando, a partir desta quinta-feira, dia 23, no site e na exposição que integram o projeto Bixiga em Artes e Ofícios: Percursos Audiovisuais. Um trabalho cordial e inusitado que tem como meta integrar o CPC e a USP com a população do Bixiga e também da cidade.
Sob a coordenação da vice-diretora do CPC e professora de antropologia Rose Satiko Gitirana Hikiji, a pesquisa começou há dois anos. “Nossa meta foi estreitar as relações com a comunidade, daí a iniciativa de iniciar um mapeamento dos artesãos e artistas. Convidamos os moradores, frequentadores e trabalhadores para pesquisarmos juntos as artes e os ofícios, visando a ampliar o conhecimento sobre o patrimônio material e imaterial da região.”
Os diversos ofícios e atividades presentes no bairro do Bixiga, identificados na pesquisa do Centro de Preservação Cultural: um riquíssimo patrimônio material e imaterial em plena região central de São Paulo
Muitas histórias – O mapeamento foi realizado a partir de quatro oficinas abertas para a comunidade. “Em Cadernos de Viagem, os participantes foram documentando o seu percurso da nossa sede, na Casa de Dona Yayá, até a oficina ou ateliê dos artesãos e artistas. Esse registro foi feito com aquarela, canetinha e materiais recolhidos nas ruas”, explica Rose Satiko. “Na oficina Observação e Escrita, o desafio foi ir além do senso comum para compor textos que provocam novas formas de pensar sobre o que entendemos como artes e ofícios, muitas. A oficina Videodocumentário promoveu um exercício do olhar. Ver filmes para fazer filmes. Observar ou provocar? Registrar ou aludir? Em filmes de curta duração destacam-se os sons, gestos e cores das artes e ofícios do Bixiga. Já na oficina Fotografia, os participantes foram estimulados a perambular pelas ruas para apreender, em imagens, a produção artesanal do Bixiga.”
São as fotos, desenhos, textos e reflexões dessas quatro oficinas que vão ser apresentadas na exposição “Bixiga Artes e Ofícios”, exibida na Casa de Dona Yayá. “Esse é o resultado de um primeiro levantamento feito pela nossa equipe, que tem a participação de alunos de história, ciências sociais, arquitetura e design”, lembra Rose. Durante a exposição, o público vai poder acessar o site do projeto. “Trata-se de um ambiente virtual com a localização, a descrição e os registros escritos, sonoros e visuais dos fazeres das artes e ofícios no Bixiga. Um site em permanente construção com base na colaboração de moradores, trabalhadores, frequentadores e interessados na região.”
Com essa iniciativa, o CPC destaca a importância da história oral. E dá voz à gente anônima que faz o bairro do Bixiga ser o que é. “Um lugar comum sob vários aspectos”, como concluiu a pesquisa. Porém, diferente em tantos outros. “Além de verde e vermelho, o mapa das artes e ofícios desvela um Bixiga mais colorido. É italiano e também africano, japonês, baiano, pernambucano, mineiro e paulistano. Em vez de imagens-clichê fixadas no tempo e no espaço, um caleidoscópio de diferentes experiências culturais foi sendo construído, com as peças do trabalho minucioso ao qual artistas e artesãos dedicam suas vidas – trabalho que a modernidade ora deixa opaco, ora ilumina”, concluíram os pesquisadores nos textos apresentados na exposição. “Um lugar comum onde várias pessoas vivem seu cotidiano, porque aqui moram, trabalham, estudam, divertem-se, perambulam. Nesse corre-corre, uma gravurista imprime em suas imagens um pouco do movimento de pessoas e carros que ela espia pela janela do seu ateliê. Ao seu redor, o trabalho de um tropel de artistas e artesãos locais se desvela na relação com os clientes: ‘Meu sapato/vestido/terno/relógio ficou pronto?’, ‘É possível restaurar esta imagem quebrada de Jesus Cristo?’. Aqui, o espocar da bateria-mirim da escola de samba. Ali, o zunido da serra do marceneiro, o ronco da máquina de costura do alfaiate.”
O sapateiro, o fabricante de luminárias e o relojoeiro: os muitos artesãos do Bixiga contam suas histórias de vida, marcadas pelo trabalho dedicado e pelo amor ao bairro que escolheram para viver
Cheiro de pão – Certo é que o Bixiga – que fica no distrito da Bela Vista, entre as ruas Major Diogo, Silvia e avenidas Nove de Julho e Brigadeiro Luís Antônio – é atípico pela integração dos moradores e comerciantes. Um bairro que acorda com o cheiro do pão italiano das melhores padarias da cidade. É embalado pelo ritmo do samba da Escola Vai-Vai, que atravessa a madrugada dos fins de semana. E anoitece com o movimento das cantinas que atraem turistas do mundo inteiro.
O mais importante: há sempre gente com tempo e disposição para dar uma pausa no trabalho e contar uma boa história. O dono da Sapataria Rápida, Elias Vieira Santos, 72 anos, é um deles. “Cheguei ao bairro e abri esta casa, na Major Diogo, há 43 anos”, lembra, enquanto lustra os sapatos de uma freguesa, “como se fossem feitos de porcelana”. Elias veio de Sergipe, aprendeu o ofício com 13 anos. “Tenho muito orgulho desta minha profissão. Criei os meus cinco filhos consertando os sapatos desta cidade. E vocês, que são da USP, sabem muito bem o que é dar uma boa educação. Minha filha é médica cardiologista. Tenho outro que é engenheiro civil. Há pedagoga, engenheiro químico e administrador de empresas. E olha só que nunca parei de trabalhar, mesmo com 16 parafusos no braço direito, resultado de um acidente terrível.”
Elias continua papeando. E o pessoal que encosta no balcão ouve com interesse. “É um pedido que fiz a Deus. Queria muito que meus filhos estudassem. Sou preto desse jeito, mas sou descendente de libaneses. Minha avó tinha os olhos mais azuis do que a Maitê Proença e a Bruna Lombardi. Sempre tem artistas famosos me procurando para consertar sapatos, botas. Outro dia, veio a Sabrina. E me adorou. Mas sou muito bem casado, pela segunda vez, com a Fátima, que é muito bonita também.”
Quando o assunto é Bixiga, Elias fica ainda mais empolgado. Daí ser um dos personagens ilustres do mapeamento do CPC. “Não existe no planeta um bairro assim tão cheio de vida e alegria. Aqui não tem ninguém que se queixa de solidão, de tristeza. Tem é muito trabalho. É um querendo ajudar o outro. Não tem lugar como este, com tantas casas para atender crianças, idosos e moradores de ruas. Quem tem algum sofrimento, é só pedir para a Nossa Senhora da Achiropita que fica curado. Com a graça recebida, a pessoa trata de ajudar a quem precisa também. É muito bonito.”
A exposição “Bixiga Artes e Ofícios” estará em cartaz nesta quinta-feira, dia 23, até 14 de novembro, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17 horas, na Casa de Dona Yayá (rua Major Diogo, 353, Bela Vista). O site do projeto Bixiga em Artes e Ofícios: Percursos Audiovisuais pode ser acessado no endereço www.usp.br/yayaBixiga. Mais informações pelo telefone (11) 3106-3562.

Uma festa para Nossa Senhora Achiropita

A exposição e o site do projeto Bixiga em Artes e Ofícios: Percursos Audiovisuais estão sendo lançados durante a maior festa do bairro e uma das mais tradicionais de São Paulo. A 86ª Festa de Nossa Senhora Achiropita estende-se até o dia 2 de setembro. Nas noites de sábado e domingo, reúne cerca de 20 mil pessoas. A relações-públicas Maria Emília Conte Moitinho explica que a festa é organizada por voluntários. “E não tem só italianos não. Há gente de várias nacionalidades e religiões que vêm aqui para ajudar, porque sabem que toda a renda é revertida para obras sociais.”
Obras como o Movimento de Alfabetização para Jovens e Adultos, a Creche Mãe Achiropita, que atende diariamente 183 crianças de 0 a 4 anos, e a Casa Dom Orione, onde centenas de moradores de rua se reúnem diariamente para lavar suas roupas, tomar banho, alimentar-se e participar de aulas de capacitação profissional e oficinas de artesanato. Também tem o Centro Educacional Dom Orione, que atende 450 crianças e adolescentes, entre 6 e 18 anos. São provenientes de famílias de baixa renda da região da Bela Vista.
Áurea e Márcio: voluntários na Festa da Achiropita
A festa da Nossa Senhora Achiropita mobiliza os voluntários que oferecem, em dezenas de barracas montadas na rua Treze de Maio, o melhor da culinária italiana. Gente que vem só para apreciar a polenta à bolonhesa, o macarrão caseiro, a pizza napolitana, o pimentão recheado. “Nós ajudamos porque fomos muito ajudados”, conta Áurea Bueno, que há 12 anos prepara, com o marido Marcio, uma polenta bem à moda tradicional. Daquela que fica horas e horas borbulhando no tacho. “Tudo o que mais queríamos na vida, a Nossa Senhora Achiropita nos deu. Os médicos, depois de vários tratamentos, disseram que eu não poderia ter filhos. E, aos 40 anos, poucos dias depois de fazer um pedido à santa, eu fiquei grávida.”
Em cada barraca, há uma história para ouvir. Uma conversa entre quitutes irresistíveis.

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