Ouvir o texto...

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Brigas familiares atrapalham a maior doação de obras de arte já feita no Brasil

Vista do Catete e Laranjeiras 1825
Óleo de Thomas Ender
Acima de R$ 1 milhão


Em 1999, o milionário Paulo Geyer doou mais de 4 mil peças ao Museu Imperial de Petrópolis. Após sua morte, seus parentes passaram a reivindicá-las de volta.



Vista do Catete e Laranjeiras
1825
Óleo de Thomas Ender
Acima de R$ 1 milhão
Vista do Catete e Laranjeiras



SOLIDÃO
Maria Cecília, a viúva de Paulo Geyer. Aos 92 anos, ela vive sozinha na mansão do casal
(Foto: Arquivo Agência O Globo)


O Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro, recebeu em 1999 a maior doação de uma coleção de arte já feita no Brasil. O milionário Paulo Geyer, do ramo da indústria química, e sua mulher, Maria Cecília, decidiram doar todo o seu acervo de livros antigos, móveis raros e obras de arte reunidos ao longo de décadas, além da mansão onde o casal vivia, no bairro carioca do Cosme Velho. Com mais de 4 mil peças, incluindo pinturas de artistas viajantes, como o alemão Johan Moritz Rugendas, o francês Nicolas-Antoine Taunay e o austríaco Thomas Ender, a coleção Geyer é uma das mais completas do país sobre temas brasileiros. O gesto de generosidade rendeu ao casal elogios da alta sociedade carioca, além do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade e da Ordem do Mérito Cultural, concedidos pelo Ministério da Cultura. O casal Geyer continuou morando na mansão. Ela deveria se transformar em museu depois da morte de ambos.

Paulo Geyer morreu em 2004, com a glória de ser um dos grandes mecenas brasileiros. Deixou cinco filhos e uma herança milionária, que incluía o grupo Unipar, gigante na área petroquímica. A partir de então, as coisas começaram a desandar para o clã. Os filhos se dividiram em sucessivas brigas pela herança. O grupo Unipar passou por diferentes comandos e mergulhou numa crise, depois da qual foi obrigado a vender praticamente todos os seus ativos e a encerrar uma história de seis décadas no setor. A doação ao Museu Imperial fora uma medida do casal para que a coleção de arte não se dispersasse pela briga entre os filhos. Em 2008, numa atitude que surpreendeu a todos, a viúva Maria Cecília entrou com uma ação na Justiça contestando a lista das obras doadas. Ela pedia que 220 peças fossem retiradas do conjunto. Ao mesmo tempo, fechou a casa e não deixou mais nenhum técnico do museu entrar. Entre os quadros que ela não quer doar estão obras importantíssimas. É o caso de uma paisagem carioca de Thomas Ender, cujo valor de mercado supera R$ 1 milhão, e de uma vista da Baía de Guanabara, do alemão Emil Bauch, de valor semelhante (as imagens no final da reportagem). O Museu Imperial recusou o pedido. “A retirada de qualquer um dos itens é inaceitável, pois feriria um princípio básico do colecionismo, a unidade do conjunto”, diz o diretor, Maurício Ferreira.

No passado, Maria Cecília vivia com seus salões cheios de empresários, embaixadores, bons-vivants e suas respectivas mulheres. Ela comandava recepções memoráveis com bom humor e grande presença de espírito. Apaixonada por pintura e objetos antigos, estava sempre em viagem com o marido, para participar de leilões na Europa ou nos Estados Unidos. Também era ativa nos negócios. Quando Paulo sofreu um infarto, ela assumiu as rédeas da companhia, demitiu diretores e recolocou a empresa nos eixos. Hoje, aos 92 anos, vive sozinha na mansão do Cosme Velho, cercada de enfermeiras, motorista e seguranças. Anda de cadeira de rodas, recebe poucas visitas e quase não sai de casa. Sua memória está fraca, e seu poder de compreensão, comprometido. Pessoas próximas dizem que ela não consegue entender o que se passa à sua volta.

Seu pedido na Justiça para retirar peças da doação ao museu prosperou. Em fevereiro deste ano, o Ministério Público Federal deu parecer favorável ao pleito de Maria Cecília. A justificativa é que ela foi casada em comunhão de bens e deveria ratificar a lista da doação. O pedido fora negado em primeira instância. Agora, será julgado pelo desembargador federal Reis Friede. Ao mesmo tempo que os advogados brigam na Justiça, movimentos suspeitos começaram a acontecer na mansão. Há sete anos sem ver a coleção, os técnicos do Museu Imperial receberam a denúncia de que alguns quadros já foram retirados de lá e desviados para local incerto. Uma testemunha que visitou a casa recentemente diz que um conjunto de pinturas que estava perto do corredor principal desapareceu. “Nenhuma obra da coleção doada pelo casal foi retirada. Algumas das obras que não deveriam integrar o inventário já haviam sido entregues às pessoas queridas que Paulo Geyer e Maria Cecília Geyer gostariam de presentear. Isso aconteceu quando Paulo ainda era vivo”, diz o advogado Sérgio Terra, que representa Maria Cecília.

Os advogados do Instituto Brasileiro de Museus, que representam o Museu Imperial, demoraram a agir nesse caso. Somente quatro anos depois de os técnicos serem impedidos de entrar na mansão, eles entraram com uma petição solicitando que os quadros fossem depositados em local seguro ou que o museu voltasse a ter acesso a eles. Esse pedido ainda não foi julgado. Além da possível retirada de algumas peças, o estado de conservação dos quadros e livros antigos também preocupa. A mansão dos Geyers fica num local cercado de mata e extremamente úmido. Por isso, livros de quase 400 anos de idade e pinturas dependuradas nas paredes ou até no teto da casa precisavam de manutenção periódica. “Paulo Geyer morava no pior lugar do Brasil para acondicionar obras de arte. Ele tirava litros de água da sua casa. Se o ambiente não for controlado, e as obras monitoradas por um especialista, a coleção corre risco”, diz o marchand Jones Bergamin, que conviveu com os Geyers.

O comportamento da viúva Maria Cecília não diz respeito apenas ao imbróglio envolvendo a doação para o Museu Imperial. Nos últimos anos, nem todos os filhos e netos têm acesso a ela e são barrados na entrada da mansão pelos seguranças. A filha mais próxima é Maria Geyer, de 54 anos, uma espécie de tutora da mãe. Essa proximidade tem feito com que ela seja contemplada com doações generosas. Recentemente, Maria Cecília deu R$ 1 milhão de presente a ela, sem distribuir aos irmãos a mesma quantia. A doação provocou a ira de outra filha, Joanita, que entrou na Justiça pedindo a interdição da mãe. O pedido foi negado na última quarta-fei­ra. Para Joanita, Maria Cecília não tem consciência do que acontece e é manipulada por Maria. Os advogados de Joanita conseguiram um laudo pericial que atesta que a assinatura da viúva na doação de dinheiro à filha Maria foi falsificada. A família diz que o laudo está equivocado. O Ministério Público do Rio de Janeiro requisitou a abertura de um inquérito policial.

No final do ano passado, Maria Cecília foi levada de cadeira de rodas à presença de um juiz no centro do Rio. Ele queria ouvi-la no processo de interdição, para verificar seu real estado de consciência. Ela apresentava momentos de confusão mental, trocava nomes de pessoas e confundia valores. Disse que ainda não fizera a doação da coleção Geyer ao Museu Imperial, mas que doaria a casa e as obras de arte. Apesar da confusão aparente, um médico perito acionado pelo juiz emitiu laudo atestando que ela ainda é capaz, embora tenha restrições provocadas pela idade. Joanita, favorável à doação integral da coleção ao Museu Imperial, entrou com outro processo, cobrando do museu mais empenho para ter acesso à coleção. Segundo ela, parte das obras já foi dada de presente a alguns de seus irmãos, e o pedido de Maria Cecília para que 220 peças não integrem a doação foi apenas uma forma de legitimar esse gesto.

Quando Paulo Geyer morreu, Maria Cecília fez de tudo para que os filhos se mantivessem unidos. Ao perceber o crescimento da hostilidade entre eles na briga pela herança, dividiu as ações do grupo e doou em partes iguais para cada um. O grupo Unipar tinha dez fábricas e mais de 3 mil funcionários. Os irmãos não se entenderam e logo iniciaram uma era de disputas pelo poder dentro da empresa. Os Geyers começaram a aparecer nos jornais como uma família beligerante. Em 2007, eles se dividiram em duas facções na luta pelo poder. As irmãs Maria, Cecília e Vera se uniram. Assumiram o comando do grupo e alijaram da direção os irmãos Alberto e Joanita. As disputas prejudicaram o andamento dos negócios. O grupo ficou conhecido pelas turbulências de gestão. Em 2008, os irmãos acertaram um armistício para que a Unipar se associasse à Petrobras e criasse uma nova companhia chamada Quattor, a segunda maior petroquímica do Brasil, com faturamento estimado em R$ 9 bilhões por ano. A família colocou seus principais ativos nesse negócio, mas saiu dele sem nenhuma fábrica. Vendeu tudo em 2010 para o grupo Braskem. O valor da venda, R$ 870 milhões, foi considerado baixo pelo mercado.

Essa operação foi comandada pelo jovem Frank Geyer, de 41 anos, neto de Paulo Geyer e filho de Cecília, que morreu em 2010. Frank se uniu às tias Maria e Vera e dirigiu o grupo sob grande hostilidade dos tios Alberto e Joanita. Esta última entrou com pedido judicial contra a tentativa de Frank de vender a Quattor em 2009. Acabou aceitando um acordo de R$ 80 milhões por sua parte na sociedade. Alberto entrou com uma ação também contra a mesma venda em 2010, mas não conseguiu impedir o negócio. Joanita e Alberto se sentiram prejudicados na condução dos negócios pelos outros irmãos. Agora, a disputa pela herança se volta para os bens privados que ainda ficaram em posse da viúva Maria Cecília. A coleção de quadros faz parte desse conjunto, ainda que o grosso tenha sido doado ao museu. Joanita acredita que os bens são aos poucos entregues à irmã Maria, que manipula a mãe, com o sobrinho Frank.

Maria tem uma vida social ativa. Suas festas são disputadíssimas e chegam a reunir mais de 1.000 pessoas. Foi ela quem tornou o cantor Latino conhecido na alta sociedade, depois de contratá-lo para um show em seu aniversário. Em 2011, Maria deu uma festa para inaugurar sua nova mansão no Jardim Botânico. A casa tem boate, pizzaria, salão de beleza, piscina estilosa e banheiras acionadas pelo celular. As paredes são decoradas com quadros do século XIX. Espalhadas pela mansão há louças da Companhia das Índias e uma coleção de pinhas de cristal – peças semelhantes a alguns itens da coleção Geyer doada ao museu.

Seu sobrinho Frank também gosta de dar festas. Ele mora em Salvador, num apartamento luxuoso de 1.000 metros quadrados. As paredes também estão cobertas de quadros antigos, e ele ostenta, como os avós, uma grande coleção de pinhas de cristal. Frank costuma andar de jatinho e vive cercado de seguranças. Seu estilo de vida, como o de Maria, desperta a desconfiança dos outros herdeiros. Eles acham que Frank e Maria tiraram proveito na condução dos negócios da família e de eventuais doações de Maria Cecília. Recentemente, Frank esteve com a ministra da Cultura, Marta Suplicy, numa reunião a portas fechadas, em que apresentou o pleito da família para retirar as 220 peças da doação. Marta confirmou a visita, mas não quis comentar o caso. Frank e Maria, como o irmão de Frank, Alberto Geyer, herdeiros da coleção, também não quiseram falar.

Em 2007, antes de entrar com a ação pedindo que as peças fossem retiradas da doação ao museu, Maria Cecília abriu sua casa para uma festa com 400 convidados. Na época, ainda entusiasmada com o gesto generoso feito com o marido, disse a um jornalista: “Acho ótimo que vire um museu. Iam dilacerar a casa e a coleção”. Os fatos recentes mostram que seu receio tinha razão de ser.

VALOR SENTIMENTAL
O preço estimado de algumas obras que Maria Cecília Geyer quer retirar da doação feita ao Museu Imperial





Vista da Enseada de Botafogo
1817
Óleo de Thomas Ender
Acima de R$ 1 milhão



Rua da Gamboa, com vista para a Baía de Guanabara
1887
Óleo de Emil Bauch
R$ 1 milhão


(Fotos: Coleção Geyer)
fonte:http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/05/brigas-familiares-atrapalham-maior-bdoacao-de-obras-de-arteb-ja-feita-no-brasil.html @edisonmariotti #edisonmariotti

Nenhum comentário:

Postar um comentário