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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Quando um museu decide colocar abaixo um capítulo da história de uma cidade


A confirmação da demolição do edifício do Museu de Arte Folclórica de Nova York, o American Folk Art Museum (AFAM), ocorrida em janeiro, criou uma forte cisão entre arquitetos, urbanistas e cidadãos nova-iorquinos. Sucessivos debates tomaram conta de blogs, jornais, revistas e redes sociais, com um desfile de argumentos a favor e contra a demolição do edifício, localizado na West 53rd. Na semana passada, porém, iniciaram-se os preparativos para que a construção venha finalmente abaixo nas próximas semanas. Pelo cronograma, até junho não terá sobrado mais nada. Com apenas 13 anos de existência, pois ficou pronta em 2001, a sede do AFAM mal entrou na adolescência e já teve a morte decretada. Será uma das mais breves existências já registrada por um edifício.

O Museu de Arte Folclórica de Nova York, à esquerda, e o vizinho MoMA: dias contados para a demolição (Jychen/Flickr)




Criada pelo casal de arquitetos nova-iorquinos Tod Williams e Billie Tsien, a obra chama a atenção por sua fachada de painéis metálicos que compõe uma dobra no formato de Y. Parece uma espécie de origami, que brinca com a ideia de que o metal pode alcançar a mesma leveza do papel. Uma construção pós-moderna e, ao mesmo tempo, quase artesanal. Outro chamariz do prédio é a sua vizinhança ilustre. Bem do seu lado esquerdo está o gigantesco MoMA, o Museu de Arte de Nova York, um dos mais visitados do mundo e considerado o principal entre todos os voltados à arte moderna. E é por causa dele que o edifício do AFAM está com os dias contados.

Fachada do antigo edifício do AFAM de noite e, ao lado, durante o dia: traços singulares (Kentriki)

O MoMa adquiriu-o há três anos, como parte de um plano para expandir-se. Como na época o Afam acumulava uma dívida de 32 milhões de dólares, a transação foi anunciada como benéfica para ambos, pois sanaria as contas de um e daria espaço extra ao outro. O Afam mudou-se para outro local, um edifício com entrada de vidro na Lincoln Square. E a diretoria do MoMA começou a investir em um projeto de expansão.

Diller Scofidio + Renfro foi o escritório contratado para criar os novos espaços. O trio assina o design de um dos mais bem sucedidos projetos que Nova York conheceu nos últimos anos, o parque High Line. Embora os profissionais afirmam terem buscado formas de preservar a fachada original, concluíram com aval do diretor do MoMa, Glenn Lowry, 59, que o melhor seria destruir tudo o que existe no lote. “Somos vítimas do nosso próprio sucesso”, afirmou Lowry ao explicar que com o crescente público visitante, é preciso criar áreas de circulação maiores.

Por ano, passam por ali cerca de 3 milhões de pessoas, fazendo do MoMa o sétimo mais frequentado do mundo, de acordo com um ranking global divulgado em 2011 pela revista The Art Newspaper. O Louvre, primeiro colocado, recebe cerca de 10 milhões de pessoas anualmente. Entre os brasileiros, o mais bem posicionado é o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, que ocupa a 14ª colocação com 2,3 milhões de visitantes ao ano. Seja onde for, o fluxo intenso de visitação faz com que em muitos museus pareçam mais estações de metrô lotadas do que propriamente um lugar para contemplar da arte. No caso no MoMa, embora a necessidade de expansão exista, a maneira como está sendo conduzida é o real motivo da polêmica.

Esboço divulgado pelo escritório Diller Scofidio + Renfro para o novo anexo: vidros e desenho impessoal

Por todo o mundo, os museus tornaram-se importantes espaços públicos e consagraram-se entre as principais opções de entretenimento das cidades. Antes voltados apenas aos estudantes, passaram a ser um bom programa para o final de semana, com potencial de transformar o que existe ao seu redor em promissoras áreas de efervescência urbana. O aumento do público dos museus é uma tendência do século 21. Hoje, há mais que o dobro de instituições de vinte anos atrás (são 55 000 no mundo todo, em comparação com 23 000 dos anos 1990).

Visitar um museu tornou-se uma forma de estabelecer um contato mais próximo com a cidade. Eles são uma ferramenta para a preservação da história não só dos acervos que comportam, mas das próprias cidades que os abrigam. Têm a capacidade de valorizar o que elas têm de melhor, como uma bela arquitetura. Assim, destruir uma fachada majestosa como a da antiga sede do Afam é enterrar um capítulo da vida nova-iorquina e desperdiçar traços belos e singulares. É também ir contra o que um museu representa, essencialmente um local para contemplação das belezas criadas por nossa civilização. Isso tudo sem contar o aspecto ambiental, já que jogar fora é sempre mais prejudicial do que reciclar.

Não há como negar que a paisagem de uma cidade está em constante transformação. Todos os dias, milhares de construções dão lugar a outras, algumas melhores e outras piores do que as anteriores. No geral, são obras sem relevância arquitetônica e pouco representativas para os cidadãos. Não é o caso da antiga sede do Afam. Segundo Tod Williams, em atividade com Billie Tsien desde 1974, esta é a segunda vez em que um projeto da dupla será posto no chão. “O primeiro foi uma loja e me deixou devastado.”

Nesses tempos em que a arte tornou-se mercadoria, os museus também passam por transformação. Nas palavras de um especialista ao jornal The Guardian, nas últimas décadas a arte passou a se acumular nas mãos de bilionários como fichas de pôquer. Em vez de reguardá-la desse intensa processo de monetização, os museus viraram, eles mesmos, parte do negócio, um fim em si mesmos. E isso parece justificar todos os meios.

fonte:http://veja.abril.com.br/blog/cidades-sem-fronteiras/2014/04/30/moma/

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