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sexta-feira, 10 de julho de 2015

série 4/5 - História e cinema: os filmes de Mazzaropi como fonte histórica.

CULTURA, CINEMA E GÊNERO

Entretanto a filmografia de Mazzaropi não consistiu apenas no reconhecimento da violência da modernização conservadora brasileira. Os filmes do ator expressam os estereótipos e preconceitos próprios a parcela da sociedade brasileira. Recusar a presença destas características significa reduzir o potencial da sua obra enquanto fonte histórica importante para a avaliação dos conflitos e contradições que perpassam um dos elementos da modernização no Brasil, a urbanização. O papel das mulheres nos filmes do cineasta revela a persistência de uma percepção estereotipada da mulher.



Uma caricatura distante das vivências da população rural observada por Antonio Candido (1987). A projeção de uma imagem passiva e submissa do gênero feminino nos filmes de Mazzaropi tem dois suportes sociais. 

O primeiro é o histórico patriarcalismo da sociedade brasileira, relacionado a uma valorização do masculino como superior ao feminino. E, segundo, o próprio temor das várias mudanças advindas com a modernização conservadora, que apesar da preservação de estruturas sociais iníquas não foi homogênea o suficiente para impedir a redefinição do papel social da mulher. Tradição e resistência a mudança são registradas na obra de Mazzaropi.

A complexidade em determinar um caminho para a compreensão da contribuição das mulheres no processo histórico é um problema debatido e retomado com certa freqüência no âmbito da história e também das ciências sociais. Tal estudo esbarra inicialmente na escassez de documentos produzidos por membros deste grupo social, ou mesmo de produções que busquem descrever ou explicar a complexidade do tema. Posteriormente, como aponta Scott (1992), a limitação ocorre devido à politização concernente ao objeto. 

A relação entre política, ideologia e teoria é marcada por demais historiadores como elemento que empregaria subjetividade e parcialidade ao trabalho de historiadores voltados à história das mulheres, o que prejudicaria a legitimidade dos estudos. A fim de estabelecer limites à análise da história das mulheres define-se então o estudo do gênero. 

O gênero desponta como termo neutro capaz de superar as questões políticas e de ir além de uma história especializada, no intuito de estabelecer uma análise do papel das mulheres, segundo Scott. Assim, a análise do processo que compõe a integração das mulheres à história revela a passagem de um interesse político, contestador, à problematização do gênero como construção social.

Desta forma, conceituar gênero exige o entendimento das diferenças biológicas, psicológicas e sociais, que vão além do papel masculino e feminino, buscando formas de análise e contextualização mais amplas e complexas. (GRUBITS; DARRAULT-HARRIS; PEDROSO, 2005, p 266)

A análise dos discursos referentes ao gênero esbarra na utilização de termos já superados, porém repletos de significação. A recorrência de termos referentes ao sexo biológico e à militância feminista remete a dificuldade de constituir pesquisas, neste campo, distantes de uma subjetividade apaixonada. Contudo é necessário salientar que a contenção de termos e direcionamento dos estudos ao gênero não deve suprimir definitivamente a questão política. Segundo Scott “a história das mulheres é um campo inevitavelmente político” (1993, p95), a supressão total deste elemento representa a eliminação de um fator determinante para o estudo e a esterilização do tema. 

Ao considerar as questões do gênero no campo da história outro fator a ser considerado é a diferença entre experiência e discurso. O primeiro elemento é profundamente influenciado pela escassez de produções que revelem informações sobre o cotidiano das mulheres. Quanto à construção de discursos referentes às mulheres, as considerações se atêm a necessidade de considerar a experiência e não se fixar apenas no texto, a fim de construir uma análise mais abrangente.

Burke ao discutir a inserção feminina na cultura popular (1995) afirma que a dificuldade de definir a participação das mulheres na construção da cultura ocorre devido à falta de documentações que ofereçam informações especificas quanto a sua participação. Porém, o autor destaca a importância das mulheres como sujeitos históricos responsáveis por preservar e transmitir os costumes e as tradições. Caberia às mulheres o papel de educar e transmitir aos filhos os elementos concernentes à sua cultura. 

Burke destaca o papel da mulher como determinante para a preservação da cultura. Dessa forma a mulher é apontada, em certos aspectos, como salvaguarda da cultura. Em determinadas ocasiões a mulher foi responsável por preservar a cultura do seu grupo, particularmente em situações de dominação. Kiernan (1993) apresenta a mulher como indivíduo responsável por transmitir a cultura e a língua às novas gerações.

Em um contexto não erudito, a mulher era responsável por educar as crianças, ensinar a língua e transmitir a cultura dos antepassados.

Ao considerar os elementos desta argumentação é possível determinar alguns aspectos referentes ao gênero em relação ao tema principal, a cultura caipira. No contexto da cultura caipira o papel da mulher freqüentemente estava bem destacado. Havia a divisão sexual do trabalho e cabia a mulher o auxílio ao marido, o cuidado com a casa e algumas práticas da lavoura. Ao considerar o modelo familiar caipira patriarcal, é possível definir a colocação da mulher neste meio social. Cândido (1987) afirma que relações conjugais na sociedade caipira eram associadas às necessidades dos dois gêneros, o que acontecia como um contrato, no qual a mulher se submetia. Segundo Fressato (2009) a sociedade rural estava baseada em um contexto hierarquizado no qual o homem possuía certa supremacia em relação à mulher, neste sentido esta hierarquia apresentaria tal preponderância que daria ao homem maior privilégio.

No decorrer da segunda onda de movimentos feministas nos Estados Unidos, na década de 1970, foi desenvolvida por pesquisadoras e teóricas do gênero a relação gênero/cinema, que resultou na teoria feminista do cinema. Segundo esta linha, o cinema, assim como as demais mídias, corresponde aos interesses da sociedade patriarcal e ao desenvolvimento do sistema capitalista.

Dessa forma, o cinema é um artifício utilizado para reforçar os papéis de homens e mulheres na sociedade. Segundo Gubernikoff: O que a teoria feminista do cinema procura demonstrar é que esses estereótipos impostos à mulher, através da mídia, funcionam como uma forma de opressão, pois, ao mesmo tempo que a transformam em objeto (principalmente quando endereçadas às audiências masculinas), a anulam como sujeito e recalcam seu papel social. (GUBERNIKOFF, 2009, p 68)

Segundo Kamita, o cinema pode se apresentar como instrumento a ser utilizado no sentido de superar esta questão. A pesquisadora afirma que “a relação cinema/gênero encaminha a busca para uma nova produção de sentido e questionamentos do senso comum em relação às atribuições masculina e feminina na sociedade.” (KAMITA, 2006). De acordo com a pesquisadora o cinema, ao abordar discussões de gênero revela-se como alternativa ao discurso cinematográfico vigente, que corresponde à cultura patriarcal. Desta forma a produção cinematográfica levaria o espectador a questionar a representação convencional, o que contribuiria para uma possível alteração na estrutura representada.

No Brasil, os trabalhos referentes à teoria feminista do cinema iniciam apenas na década de 1980, inspirados por trabalhos já realizados nos Estados Unidos. A análise das produções carnavalescas de Carmem Miranda (décadas de 1930 e 1940), das chanchadas (décadas de 1940 e 50), das produções da Vera Cruz (década de 50) e das pornochanchadas (década de 70) revela os paradigmas muito semelhantes aos já apresentados: Na história da cinematografia brasileira, podemos observar uma forte influência do sistema patriarcal e de seus valores, já que a participação da mulher na sociedade nunca foi total. Os mesmos conceitos se reproduzem, o da mulher como objeto ou como não participante da sociedade produtiva, já que a cultura oficial sempre esteve nas mãos das classes dominantes. (GUBERNIKOFF, 2009, p 68)

Neste sentido, a obra de Mazzaropi, herdeira das chanchadas (FRESSATO, 2009) é profundamente marcada pela representação da mulher no contexto da cultura caipira. Geni Prado, a eterna companheira de Mazzaropi em suas produções interpreta, no decorrer de sua carreira ao lado de Mazzaropi, diferentes mulheres. Contudo o estereótipo da mulher submissa ao marido, correspondente à sociedade patriarcal, é recorrente. Em “Jeca Tatu”, enquanto Jeca descansa a esposa Gerônima se dedica ao trabalho. Em diversas cenas o personagem de Mazzaropi é rude com a esposa, ameaçando-a de agressão. Em algumas produções excessos acontecem.

Em “Meu Japão brasileiro” o personagem principal evita as investidas amorosas da professora local (Zilda Cardoso) com certo excesso. Em “Jeca Tatu” as investidas de Baratinha (Nena Viana) são rebatidas com desprezo e ridicularização. Tolentino (2005) caracteriza a obra de Mazzaropi como misógina e afirma que o caipira de Mazzaropi é o oposto do apresentado por Candido (1987) e reitera a situação de maus tratos com que se relaciona com a mulher.

Em relação à situação apresentada por Candido (1987), em relação no que ao casamento, os filmes de Mazzaropi apresentam uma série de elementos a ser analisados. Em “As aventuras de Pedro Malasartes”, Maria empreende uma busca pelo noivo que a abandonara, atrelando seu destino ao dele. Ao final da trama, após serem acolhidos pela Igreja, Pedro e Maria são aconselhados ao casamento pelo padre que os recebeu. Em algumas obras, as filhas se prendem a compromissos, ou como em “Uma pistola para Djeca”, têm a honra restaurada apenas após o casamento.

Dessa forma, a obra de Mazzaropi revela na questão do gênero uma temática relevante a ser considerada. Ao apontar as relações de opressão e submissão no contexto da sociedade patriarcal, a filmografia de Mazzaropi contribui não só para a análise cultural do gênero, como a sua inserção e abordagem em um contexto cinematográfico. Mais uma vez as produções se revelam importantes
documentos para a análise e compreensão do processo de construção da cultura caipira. Neste sentido, a obra de Mazzaropi supera a questão apontada por Tolentino (2005) e se aproxima do proposto por Kamita (2006), ao ir além dos interesses do patriarcado se apresenta como instrumento de análise e problematização da mulher no contexto da cultura caipira. 

fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
produção bibliográfica de Giselle Gubernikoff

continuação: dia 12/07/2015 as 12:00hs série 5/5 - final


Giselle Gubernikoff
Possui o 1o. Ano de Jornalismo pela Fundação Armando Álvares Penteado (1971), graduação em Artes/Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1976), mestre em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1985), doutora em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1992), livre-docência em Ciências da Comunicação/ Publicidade pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo(2000). Professora Titular pela ECA USP em Artes Visuais/Multimídia e Intermídia na especialização Fotografia, Cinema e Vídeo (2002). Atualmente é professora titular do Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Audiovisual/ Cinema, com ênfase em Produção, Roteiro e Direção Cinematográficos, atuando principalmente nos seguintes temas: mídias digitais e novas tecnologias de comunicação, linguagem cinematográfica, produção audiovisual, cinema publicitário, representação feminina, cinema brasileiro, cinema e consciência cultural e museologia e mídias digitais.
(Texto informado pelo autor)

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