MAZZAROPI E O “CAIPIRÊS”
Inserida no contexto da colonização, a
língua portuguesa no Brasil passa a ser obrigatória apenas em meados do século
XVIII, após a determinação do Marquês de Pombal, que recomendava o seu uso, a
fim de preservar o poder hegemônico sobre as colônias, evitando a
indigenização linguística e cultural dos colonizadores (TROUCHE,
2000). Devido à vasta e complexa formação do território nacional, o
surgimento de infinitos dialetos e variações do português foi uma realidade
desde o início da colonização. Estes fatores podem ser notados atualmente em
regiões, geográfica e culturalmente, mais fechadas, como o caso do interior do
estado de São Paulo, território cultural de referência dos filmes de
Mazzaropi.
O contexto de ocupação desta área é
determinante para a construção do dialeto empregado nas comunidades caipiras da
região. Segundo Amaral (1976), o dialeto caipira é resultante do processo de
expansão bandeirante. A aproximação com o nativo e posteriormente a influência
africana geraram diversas modificações na pronúncia, gramaticalização e
significados, assim como o surgimento de novas palavras e expressões
linguísticas.
Neste contexto, devido ao
conservadorismo da sociedade caipira de modelo fechado, tais variações
se enraizaram e persistiram às tentativas de normatização e organização da
língua portuguesa no Brasil.
O linguista Mario Eduardo
Viaro questiona a abrangência desta influência, segundo ele, “muitas
pronúncias que pensaríamos ser típicas dos caipiras e matutos, ainda eram
correntes em Portugal no começo do século XX” (VIARO, 2009). Assim, a influência
do português arcaico na construção do dialeto caipira seria consideravelmente
maior do que o observado por outros teóricos da língua
portuguesa.
A observação do dialeto caipira,
inserido no contexto linguístico hierarquizado, que privilegia a norma culta e
o padrão escrito, revela a visão estereotipada e preconceituosa com a qual é
referenciada a cultura caipira como um todo: O português rural ou dialeto
caipira (como é mais conhecido) é uma variedade que está à margem do
processo empregado na constituição da norma culta padrão atual, ou seja, é
basicamente de cunho oral, colocando-se a distância da rigidez do código
escrito, e, por esse motivo, tem sido considerada uma variedade de menor
prestígio social, sendo utilizada por estratos sociais menos privilegiados
(PIRES, 2008, p 302).
Neste contexto, a linguagem urbana
ensinada nas escolas e adotada como oficial configurou o padrão culto a ser
seguido, o que desqualifica o falar caipira e seu processo de construção.
Segundo Silva “a cidade tornou-se sede da língua padrão e esta critério de
distinção e ascensão social. [...] A vida urbana passou a ser retratada como
superior em riqueza e progresso” (SILVA, 1999, p 243). Estes fatores acentuam a
dicotomia rural/urbano, acrescentando em mais este aspecto (linguagem) a
tentativa intermitente de imposição da realidade urbana no meio rural.
O preconceito em relação à cultura
popular, neste caso a cultura caipira, é tão arraigado no sentido de enaltecer
o que é denominado culto que vai além da questão linguística. Em relação à
dicotomia rural/urbano, tema freqüente na filmografia de Mazzaropi, o uso da
linguagem como meio de revelar as diferenças entre as culturas é marcante. A
recorrente divisão social apresentava personagens das classes mais altas que
possuíam uma linguagem mais polida, inseridos muitas vezes em um contexto
de dominação e exploração do trabalho e da ingenuidade do personagem caipira.
Em filmes de referência como Jeca Tatu
(1959) a divisão de classes é muito clara no contexto do meio rural e torna-se mais
evidente no momento em que Jeca parte para a capital a fim de negociar
votos com o candidato a deputado. Ao observar mais atentamente a obra de
Mazzaropi, que também fora alvo de preconceito por parte da crítica, e ao
inseri-la em uma abordagem histórica, social e cultural, destaca-se o quanto
essa obra tem a oferecer para a compreensão crítica do processo de construção
cultural das relações sociais brasileiras.
A necessidade do cineasta em distinguir
perante os espectadores as marcas que separam os elementos rurais dos urbanos,
evidencia a percepção do preconceito
social quanto aos portadores de uma cultura considerada arcaica e superada.
Embora complexo, pois permeado por estruturas herdadas do português arcaico, o
falar caipira remetia a valores e expressões consideradas inadequadas a
modernização da sociedade brasileira.
Mazzaropi explora esse conflito com
habilidade ao demonstrar como a urbanização constituía, sob um verniz de
inovação, a repetição do conservadorismo pertinente à elite cultural
brasileira. O deslocamento de milhões de brasileiros para as cidades foi
acompanhado da rejeição dos seus valores por parte da elite que auferiu
benefícios com a modernização, pautada em novas formas de extração da
renda do trabalho. Mazzaropi não foi um crítico engajado da modernização
conservadora (ORTIZ, 1991) da sociedade brasileira, mas detectava suas
contradições e as incorporava a sua obra no intuito de atrais as pessoas
participantes deste processo.
Por meio da observação da obra de
Mazzaropi, a questão da linguagem apresenta-se claramente como fator de
identificação da cultura caipira em sua filmografia. Segundo Linhares (2004)
“entre vários elementos que fazem parte da cultura caipira, a linguagem é,
seguramente, uma das mais marcantes na identificação do caipira como tal”. Ao
incorporar seu Jeca, Mazzaropi lança mão deste requisito na composição do
personagem, o que vai muito além de uma mera caracterização, pois a
identificação do público com o personagem atinge um novo significado através
do reconhecimento da língua e da linguagem do caipira como um todo: sotaques,
pronúncias, caracterizações e trejeitos.
Em “O Jeca e A Freira” (1967), a
composição do personagem realizada por Mazzaropi atinge uma grande veracidade
que compreende desde a língua, ponto forte da filmografia de Mazzaropi,
até mesmo o trabalho de corpo, a composição do figurino e da ambientação,
elementos que permeiam o enredo e se revelam mais verossímeis nas práticas do
cotidiano representadas, no manuseio das ferramentas, no asseio.
O “caipirês” usado por Mazzaropi
possivelmente soaria engraçado a ouvidos menos acostumados com tais pronúncias,
porém, para a maioria do seu público a adoção do dialeto contribuía para uma
ligação afetiva com o personagem e ao falar a mesma língua do
público, Mazzaropi se inseria de maneira mais profunda na realidade que
buscava retratar.
fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
produção bibliográfica de Giselle Gubernikoff
continuação: dia 10/07/2015 as 12:00hs série 4/5
Giselle Gubernikoff
Possui o 1o. Ano de Jornalismo pela Fundação Armando Álvares Penteado (1971), graduação em Artes/Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1976), mestre em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1985), doutora em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1992), livre-docência em Ciências da Comunicação/ Publicidade pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo(2000). Professora Titular pela ECA USP em Artes Visuais/Multimídia e Intermídia na especialização Fotografia, Cinema e Vídeo (2002). Atualmente é professora titular do Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Audiovisual/ Cinema, com ênfase em Produção, Roteiro e Direção Cinematográficos, atuando principalmente nos seguintes temas: mídias digitais e novas tecnologias de comunicação, linguagem cinematográfica, produção audiovisual, cinema publicitário, representação feminina, cinema brasileiro, cinema e consciência cultural e museologia e mídias digitais.
(Texto informado pelo autor)
(Texto informado pelo autor)
anterior - série 2/5 em:
http://museu2009.blogspot.com.br/2015/07/serie-25-historia-e-cinema-os-filmes-de.html
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