CULTURA, CINEMA E GÊNERO
Entretanto a filmografia de Mazzaropi
não consistiu apenas no reconhecimento da violência da modernização
conservadora brasileira. Os filmes do ator expressam os estereótipos e
preconceitos próprios a parcela da sociedade brasileira. Recusar a presença destas
características significa reduzir o potencial da sua obra enquanto fonte
histórica importante para a avaliação dos conflitos e contradições que
perpassam um dos elementos da modernização no Brasil, a urbanização. O
papel das mulheres nos filmes do cineasta revela a persistência de uma
percepção estereotipada da mulher.
Uma caricatura distante das vivências
da população rural observada por Antonio Candido (1987). A projeção de uma
imagem passiva e submissa do gênero feminino nos filmes de Mazzaropi tem dois
suportes sociais.
O primeiro é o histórico patriarcalismo
da sociedade brasileira, relacionado a uma valorização do masculino como
superior ao feminino. E, segundo, o próprio temor das várias mudanças advindas
com a modernização conservadora, que apesar da preservação de estruturas
sociais iníquas não foi homogênea o suficiente para impedir a redefinição do
papel social da mulher. Tradição e resistência a mudança são registradas na
obra de Mazzaropi.
A complexidade em determinar um caminho
para a compreensão da contribuição das mulheres no processo histórico é um
problema debatido e retomado com certa freqüência no âmbito da história e
também das ciências sociais. Tal estudo esbarra inicialmente na escassez de
documentos produzidos por membros deste grupo social, ou mesmo de produções que
busquem descrever ou explicar a complexidade do tema. Posteriormente, como
aponta Scott (1992), a limitação ocorre devido à politização concernente ao
objeto.
A relação entre política, ideologia e
teoria é marcada por demais historiadores como elemento que empregaria
subjetividade e parcialidade ao trabalho de historiadores voltados à história
das mulheres, o que prejudicaria a legitimidade dos estudos. A fim de
estabelecer limites à análise da história das mulheres define-se então o
estudo do gênero.
O gênero desponta como termo neutro
capaz de superar as questões políticas e de ir além de uma história
especializada, no intuito de estabelecer uma análise do papel das mulheres,
segundo Scott. Assim, a análise do processo que compõe a integração das
mulheres à história revela a passagem de um interesse político, contestador, à
problematização do gênero como construção social.
Desta forma, conceituar gênero exige o
entendimento das diferenças biológicas, psicológicas e sociais, que vão além do
papel masculino e feminino, buscando formas de análise e contextualização mais
amplas e complexas. (GRUBITS; DARRAULT-HARRIS; PEDROSO, 2005, p 266)
A análise dos discursos referentes ao
gênero esbarra na utilização de termos já superados, porém repletos de
significação. A recorrência de termos referentes ao sexo biológico e à
militância feminista remete a dificuldade de constituir pesquisas, neste campo,
distantes de uma subjetividade apaixonada. Contudo é necessário salientar que a
contenção de termos e direcionamento dos estudos ao gênero não deve suprimir
definitivamente a questão política. Segundo Scott “a história das
mulheres é um campo inevitavelmente político” (1993, p95), a supressão
total deste elemento representa a eliminação de um fator determinante para o
estudo e a esterilização do tema.
Ao considerar as questões do gênero no
campo da história outro fator a ser considerado é a diferença entre experiência
e discurso. O primeiro elemento é profundamente influenciado pela escassez de
produções que revelem informações sobre o cotidiano das mulheres. Quanto à construção
de discursos referentes às mulheres, as considerações se atêm a necessidade de
considerar a experiência e não se fixar apenas no texto, a fim de construir uma
análise mais abrangente.
Burke ao discutir a inserção feminina
na cultura popular (1995) afirma que a dificuldade de definir a participação
das mulheres na construção da cultura ocorre devido à falta de documentações
que ofereçam informações especificas quanto a sua participação. Porém, o autor
destaca a importância das mulheres como sujeitos históricos responsáveis por
preservar e transmitir os costumes e as tradições. Caberia às mulheres o papel
de educar e transmitir aos filhos os elementos concernentes à sua
cultura.
Burke destaca o papel da mulher como
determinante para a preservação da cultura. Dessa forma a mulher é apontada, em
certos aspectos, como salvaguarda da cultura. Em determinadas ocasiões a mulher
foi responsável por preservar a cultura do seu grupo, particularmente em
situações de dominação. Kiernan (1993) apresenta a mulher como indivíduo
responsável por transmitir a cultura e a língua às novas gerações.
Em um contexto não erudito, a mulher
era responsável por educar as crianças, ensinar a língua e transmitir a cultura
dos antepassados.
Ao considerar os elementos desta
argumentação é possível determinar alguns aspectos referentes ao gênero em
relação ao tema principal, a cultura caipira. No contexto da cultura caipira o
papel da mulher freqüentemente estava bem destacado. Havia a divisão sexual do
trabalho e cabia a mulher o auxílio ao marido, o cuidado com a casa e algumas
práticas da lavoura. Ao considerar o modelo familiar caipira patriarcal, é
possível definir a colocação da mulher neste meio social. Cândido
(1987) afirma que relações conjugais na sociedade caipira eram associadas
às necessidades dos dois gêneros, o que acontecia como um contrato, no qual a
mulher se submetia. Segundo Fressato (2009) a sociedade rural estava
baseada em um contexto hierarquizado no qual o homem possuía certa supremacia
em relação à mulher, neste sentido esta hierarquia apresentaria tal
preponderância que daria ao homem maior privilégio.
No decorrer da segunda onda de
movimentos feministas nos Estados Unidos, na década de 1970,
foi desenvolvida por pesquisadoras e teóricas do gênero a relação
gênero/cinema, que resultou na teoria feminista do cinema. Segundo esta linha,
o cinema, assim como as demais mídias, corresponde aos interesses da sociedade
patriarcal e ao desenvolvimento do sistema capitalista.
Dessa forma, o cinema é um artifício
utilizado para reforçar os papéis de homens e mulheres na sociedade. Segundo
Gubernikoff: O que a teoria feminista do cinema procura demonstrar é que
esses estereótipos impostos à mulher, através da mídia, funcionam como uma
forma de opressão, pois, ao mesmo tempo que a transformam em objeto
(principalmente quando endereçadas às audiências masculinas), a anulam como
sujeito e recalcam seu papel social. (GUBERNIKOFF, 2009, p 68)
Segundo Kamita, o cinema pode se
apresentar como instrumento a ser utilizado no sentido de superar esta
questão. A pesquisadora afirma que “a relação cinema/gênero encaminha a busca
para uma nova produção de sentido e questionamentos do senso comum em relação
às atribuições masculina e feminina na sociedade.” (KAMITA, 2006). De acordo
com a pesquisadora o cinema, ao abordar discussões de gênero revela-se como
alternativa ao discurso cinematográfico vigente, que corresponde à cultura
patriarcal. Desta forma a produção cinematográfica levaria o espectador a
questionar a representação convencional, o que contribuiria para uma possível
alteração na estrutura representada.
No Brasil, os trabalhos referentes à
teoria feminista do cinema iniciam apenas na década de 1980, inspirados por
trabalhos já realizados nos Estados Unidos. A análise das produções
carnavalescas de Carmem Miranda (décadas de 1930 e 1940), das chanchadas
(décadas de 1940 e 50), das produções da Vera Cruz (década de 50) e das
pornochanchadas (década de 70) revela os paradigmas muito semelhantes aos já
apresentados: Na história da cinematografia brasileira, podemos
observar uma forte influência do sistema patriarcal e de seus valores, já
que a participação da mulher na sociedade nunca foi total. Os mesmos conceitos
se reproduzem, o da mulher como objeto ou como não participante da sociedade
produtiva, já que a cultura oficial sempre esteve nas mãos das classes
dominantes. (GUBERNIKOFF, 2009, p 68)
Neste sentido, a obra de Mazzaropi,
herdeira das chanchadas (FRESSATO, 2009) é profundamente marcada pela
representação da mulher no contexto da cultura caipira. Geni Prado, a eterna
companheira de Mazzaropi em suas produções interpreta, no decorrer de sua
carreira ao lado de Mazzaropi, diferentes mulheres. Contudo o estereótipo da
mulher submissa ao marido, correspondente à sociedade patriarcal, é recorrente.
Em “Jeca Tatu”, enquanto Jeca descansa a esposa Gerônima se dedica ao
trabalho. Em diversas cenas o personagem de Mazzaropi é rude com a esposa,
ameaçando-a de agressão. Em algumas produções excessos acontecem.
Em “Meu Japão brasileiro” o personagem
principal evita as investidas amorosas da professora local (Zilda Cardoso) com
certo excesso. Em “Jeca Tatu” as investidas de Baratinha (Nena Viana) são
rebatidas com desprezo e ridicularização. Tolentino (2005) caracteriza a obra
de Mazzaropi como misógina e afirma que o caipira de Mazzaropi é o oposto do
apresentado por Candido (1987) e reitera a situação de maus tratos com que
se relaciona com a mulher.
Em relação à situação apresentada por
Candido (1987), em relação no que ao casamento, os filmes de Mazzaropi
apresentam uma série de elementos a ser analisados. Em “As aventuras de Pedro
Malasartes”, Maria empreende uma busca pelo noivo que a abandonara, atrelando
seu destino ao dele. Ao final da trama, após serem acolhidos pela Igreja, Pedro
e Maria são aconselhados ao casamento pelo padre que os recebeu. Em
algumas obras, as filhas se prendem a compromissos, ou como em “Uma pistola
para Djeca”, têm a honra restaurada apenas após o casamento.
Dessa forma, a obra de Mazzaropi revela
na questão do gênero uma temática relevante a ser considerada. Ao apontar as
relações de opressão e submissão no contexto da sociedade patriarcal, a
filmografia de Mazzaropi contribui não só para a análise cultural do gênero,
como a sua inserção e abordagem em um contexto cinematográfico. Mais uma vez as
produções se revelam importantes
documentos para a análise e compreensão
do processo de construção da cultura caipira. Neste sentido, a obra de
Mazzaropi supera a questão apontada por Tolentino (2005) e se aproxima do
proposto por Kamita (2006), ao ir além dos interesses do patriarcado se
apresenta como instrumento de análise e problematização da mulher no contexto
da cultura caipira.
fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
produção bibliográfica de Giselle Gubernikoff
continuação: dia 12/07/2015 as 12:00hs série 5/5 -
final
Giselle Gubernikoff
Possui o 1o. Ano de Jornalismo pela Fundação Armando Álvares Penteado (1971), graduação em Artes/Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1976), mestre em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1985), doutora em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1992), livre-docência em Ciências da Comunicação/ Publicidade pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo(2000). Professora Titular pela ECA USP em Artes Visuais/Multimídia e Intermídia na especialização Fotografia, Cinema e Vídeo (2002). Atualmente é professora titular do Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Audiovisual/ Cinema, com ênfase em Produção, Roteiro e Direção Cinematográficos, atuando principalmente nos seguintes temas: mídias digitais e novas tecnologias de comunicação, linguagem cinematográfica, produção audiovisual, cinema publicitário, representação feminina, cinema brasileiro, cinema e consciência cultural e museologia e mídias digitais.
(Texto informado pelo autor)
(Texto informado pelo autor)
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