O Centro de Artes José de Guimarães põe os visitantes a pensar na relação entre peças inusitadas e a arte contemporânea em Objectos Estranhos: ensaio de proto-escultura. Este fim-de-semana inaugura também a mostra colectiva Caminhos de Floresta.
É da relação por vezes invulgar, outras vezes mais óbvia, entre artefactos nada canónicos, peças religiosas e arte contemporânea que se constróiObjectos estranhos
FOTO: NELSON GARRIDO
Assim que se entra na sala de exposições do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG) dá-se de caras com mais de uma dezena de cabaças compridas e secas penduradas sobre um suporte. São uma presença inusitada num local como aquele, mas há qualquer coisa de familiar no seu formato contorcido. Uns centímetros ao lado está a resposta a essa referência que por instantes ressoou: duas cobras em madeira policromada estão dispostas na parede. Contorcidas também. Rapidamente se estabelece uma ligação entre aqueles dois conjuntos. É nesta relação por vezes invulgar, outras vezes mais óbvia, entre artefactos nada canónicos, peças religiosas e arte contemporânea que se constrói Objectos estranhos, uma das duas novas exposições do museu de Guimarães.
Aqui contam-se “histórias de objectos em trânsito”, uma ideia que ganha força no subtítulo da exposição: “ensaio de proto-escultura”. Ou seja, aquilo que o CIAJG reúne e coloca em diálogo são peças que “não são meramente funcionais, mas não são escultura ainda”, explica o director do centro de arte, Nuno Faria, que é o co-curador de “Objectos estranhos” com Fernando Marques Pentenado.
A nova exposição do museu de Guimarães, inaugurada no início do mês, retoma uma proposta que constava já de “Para além da história”, mostra com que se inaugurou o CIAJG, há quatro anos. Objectos estranhos: ensaio de proto-escultura era já o título de uma das salas, reunindo contributos das colecções de diferentes instituições locais, criações contemporâneas e peças do acervo do próprio centro, que foi criado a partir das colecções de arte africana e americana pré-colombiana que o artista plástico José de Guimarães reuniu durante décadas, bem como obras do próprio. Esse conceito mantém-se, mas é agora “ampliado”, explica Nuno Faria.
FOTO: NELSON GARRIDO
O lugar tem presença marcante na exposição. Mas o curador não quis mostrar a cidade “petrificada” que faz parte de um imaginário vimaranense. Pelo contrário, a ideia foi “liquidifica-la”
Nos diferentes módulos da exposição encontram-se outros tipos de abóboras, das mais comuns às de chila, usadas para fazer doces, que foram compradas a produtores locais, bem como corais, cedidos por um colecionador vimaranense. Estes objectos partilham o espaço com paramentos de irmandades católicas ou esculturas religiosas – um dragão de sete cabeças, da colecção da irmandade e S. Torcato, e um S. João Baptista, cortesia da Ordem de S. Francisco. O diálogo completa-se através da presença de peças contemporâneas como as Flores, de pregos e fios, de f.marquespenteado (2016), e as esculturas de madeira de Franklim Vilas Boas, da década de 1960.
Já aquelas cabaças que abrem a exposição foram cedidas por José Cardoso, um comerciante de Guimarães, que cultiva vegetais e frutos no seu pequeno quintal no centro da cidade. A sua casa fica situada no início da avenida D. Afonso Henriques, a mesma onde está o Centro Cultural Vila Flor, e não é raro ver turistas e locais a espreitarem pela vedação impressionados com a estranha forma daqueles legumes. Nuno Faria quis tê-los em “Objectos estranhos” porque também vê esta exposição como “uma visita à estranheza e à excentricidade de Guimarães”. “Aquilo que é marginal é que muitas vezes fixa a nossa relação com os lugares”, defende.
O lugar têm uma presença marcante na forma como foi construída esta exposição. Mas o curador não quis mostrar a cidade excepcional e “petrificada” que faz parte de um certo imaginário vimaranense. Pelo contrário, a ideia foi “liquidifica-la” e, nesse esforço, é convocado o contributo de um pintor popular que, entre os anos 1950 e 1970, retratou Guimarães – entre outras cidades como Lisboa, Viana do Castelo ou Braga. Manuel Mendes Pereira, conhecido como Mestra Caçoila, era um alfaiate que se fez artista e que imprimiu um estilo que cruzava o que via com aquilo que imaginava. Não são, por isso, raros, quadros em que ao fixar um determinado espaço da cidade, inventa coisas que ali não estão nem nunca estiveram – como portas e janelas ou mesmo edifício inteiros.
Há um pequeno quadro que é uma réplica de um dos frescos de Pompeia e uma cena idílica que é uma interpretação da pintura de Poussin, pintor francês do século XVII
FOTO: NELSON GARRIDO
O CIAJG tinha lançado um apelo público para que particulares que tivessem obras de Mestre Caçoila na sua posse pudessem cedê-las para esta exposição. Isso permitiu reunir mais de 40 quadros do pintor, representando transversalmente as três décadas da sua produção artística e os principais temas: festas, arquitectura, retratos e uma até aqui pouco clara relação com a arte erudita. Por exemplo, há um pequeno quadro que é uma réplica de um dos frescos de Pompeia e uma cena idílica que é uma interpretação da pintura de Poussin, pintor francês do século XVII.
“Há um conhecimento sobre o Mestra Caçoila que se está a formar e só tendo acesso a estas pinturas todas juntas é que conseguimos pensar sobre a sua obra”, explica Nuno Faria. O curador conheceu a obra do pintor através de José de Guimarães, durante o trabalho de preparação para a abertura do centro de arte contemporânea. O artista plástico que dá nome ao centro de artes vimaranense conheceu Caçoila na juventude – o alfaiate era cliente da casa de tecidos do seu pai – e em Objectos estranhos expõem-se um retrato seu feito por Mestre Caçoila em 1967 e um auto-retrato de Caçoila com José de Guimarães, no dia do casamento deste.
O interesse de Nuno Faria e por Mestre Caçoila vai, porém, muito para além da sua relação com o patrono do centro de artes. Caçoila permite convocar a ideia de “anónimo no autor”, que tem a ver com a forma como o CIAJG e esta exposição “Objectos estranhos” foi pensada. “Não me interessa a catalogação da obra, interessa-me inscrever essa obra sem preconceitos”, explica.
FOTO: NELSON GARRIDO
Segundo Nuno Faria, director do centro, esta exposição “parte de uma ideia de domesticação da estrutura que é a relação do ser humano com a natureza”
Uma intervenção longitudinal
Grande parte das obras de Mestre Caçoila está concentrada na entrada da sala 10, a última das três salas do CIAJG ocupada por “Objectos estranhos”. É aqui que melhor se perceba a relação pretendida nesta exposição entre a colecção permanente do museu – com três estátuas de madeira e missangas da etnia Bamileke, dos Camarões –, a obra de José de Guimarães (“Camões”, escultura em papel de 1985), artefactos inusitados como uma altíssima escada de vindima ou os bonecos de papel articulados e electrificados que são o ex-libris da Marcha Gualteirana, nas festas da cidade que decorrem em Agosto. E depois há o lugar da arte contemporânea, através de duas séries de trabalhos – escultura de breu e tingimentos sobre algodão – de Musa Paradisíaca, projecto artístico de Eduardo Guerra e Miguel Ferrão.
A dupla trabalha conjuntamente desde 2010 e tem uma prática plural que vai do desenho à escultura, passando pela fotografia e o filme e tem desenvolvido os seus trabalhos no diálogo com outros artistas ou com instituições. Eduardo Guerra fala, por isso, das peças aqui expostas como “tributos a coisas que nos foram oferecidas”.
As obras de Musa Paradisíaca percorrem longitudinalmente todo o espaço do CIAJG durante o novo ciclo expositivo inaugurado no início do mês – e que se prolonga até ao final do ano. No piso superior, onde está a colecção permanente do centro, mostram pela primeira vez o vídeo Fome animal, rodado nos Açores e musicado em Guimarães pela Banda Filarmónica de Pevidém, bem como três serigrafias sobre celuloide, dispostas nas paredes, que se repetem nas três salas onde está “Objectos estranhos”.
Há uma ideia de recorrência na intervenção de Musa Paradisíaca no CIAJG que permite reencontrar, por exemplo, os mesmos lábios esculpidos em cola animal em dois locais diferentes do museu, ou ver as esculturas da série “Bestas” junto da colecção permanente e também na exposição Caminhos de Floresta, inaugurada esta sexta-feira, no piso subterrâneo. As Bestas de Museu Paradisíaca (em parceria com Tomé Coelho) são bustos em cola animal sobre um tronco de árvore e a árvore está no centro desta mostra colectiva. Segundo Nuno Faria, director do centro, esta exposição “parte de uma ideia de domesticação da estrutura que é a relação do ser humano com a natureza”.
O triângulo arte, técnica, natureza está presente nas várias obras chamadas para “Caminhos de Floresta”, da grande estrutura de madeira e uma parafernália de objectos, construída ao longo de anos por Filipe Feijão – e que foi transladada para o CIAJG –, às esculturas feitas a partir de árvores de Reis Valdrez, passando pela instalação a partir de bambus, de Alberto Carneiro. Na exposição podem ainda ser vistas obras de Celeste Cerqueira, Maria Capelo, Ilda David e Franklim Vilas Boas.
Fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-estranho-lugar-de-uma-cabaca-num-museu-1737945
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