Tendo seguido a discussão acalorada sobre o uso de fatos de corpo inteiro por atletas muçulmanas nos Jogos Olímpicos, bem como sobre a proibição do burkini em algumas praias francesas, penso que alguns factos são - deliberadamente ou não - deixados de fora da equação.
Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, 2016
(imagem retirada do You Tube)
Por um lado, alguns vêem nessas imagens a confirmação de seus medos do Islão, a espalhar e a ameaçar a nossa maneira de viver, a defender a opressão e submisão das mulheres no mundo islâmico, e não só. Essas pessoas não parecem saber ou reconhecer o quão diversa e plural é a prática do Islão em todo o mundo. Além disso, parecem ignorar especialmente o facto do uso do véu (um termo usado para se referir genericamente ao hijab, chador, niqab e burqa) ser, em muitos casos, uma opção para muitas mulheres muçulmanas, um símbolo não só da sua crença religiosa, mas também de identidade, de liberdade ou, simplesmente, de uma proveniência rural (como o é ainda, por exemplo, na Grécia e noutros países do sul europeu, onde as mulheres mais velhas nas aldeias não considerariam sair das suas casas sem cobrir a cabeça com o lenço - ainda nos lembramos de onde vem isso?). O livro de Leila Ahmed “A Quiet Revolution: The Veil's Resurgence, from the Middle East to America” ajudou-me a colocar esta questão no seu contexto histórico e permitiu-me conhecer algumas perspectivas contemporâneas [vejam também estevídeo dos LA Times, onde muçulmanas americanas explicam o que seu hijab significa para elas].
À esquerda, Jennifer Lopez na gala do Met, 2016 (imagem retirada de ibtimes.com). À direita, publicidade dos Dolce & Gabbana (imagem retirada do Pinterest).
Outra questão que as pessoas neste lado do argumento parecem afirmar, enquanto expressam a sua preocupação em relação ao véu e o lugar da mulher no mundo islâmico, é que o lugar das mulheres no "Ocidente" não é mais um problema. Olhemos para o equipamento revelador das atletas do vólei de praia (uma moda bastante diferente da do equipamento dos atletas do sexo masculino na mesma modalidade), as actrizes de Hollywood que aparecem praticamente nuas em eventos públicos, a presença sexualizada das mulheres na publicidade de todos os tipos de produtos, etc. (para referir apenas alguns exemplos mais superficiais relacionados com a aparência, sem entrar nos promenores da vida diária social, profissional e doméstica): São estas imagens que representam a libertação das mulheres e o progresso ocidental ou, simplesmente, os dois lados da mesma moeda? Os que se mostram preocupados com o lugar da mulher no mundo islâmico raramente expressam preocupações em relação à forma como as mulheres no “Ocidente” são vistas, tratadas, devem comportar-se ou vestir-se para agradar, e o nível de escolha ou imposição social nestes casos. Este não será mais um assunto?
Do outro lado, temos os defensores da liberdade de escolha para as mulheres. Estas pessoas não vêem o véu como uma ameaça ao nosso modo de vida e um símbolo da opressão das mulheres. Defendem o direito das mulheres de usar roupa modesta (não muito diferente daquela considerada apropriada nos meios conservadores cristãos ou judáicos). Considero que faço parte deste grupo de pessoas e é por isso, provavelmente, que me sinto particularmente incomodada com as omissões nos seus argumentos. A omissão mais significativa, na minha opinião, é que o uso ou não do hijab ou do burkini não é uma escolha para todas as mulheres muçulmanas. E é aqui que tudo começa. Apesar disto nem sempre ser mencionado, como se não fosse um assunto, toda esta discussão sobre a liberdade de vestir um hijab ou um burkini (ou até a burqa, uma vez que este grupo mostra-se particularmente tolerante perante pessoas que escondem a sua identitade no espaço público) está a acontecer porque muitas mulheres no mundo são obrigadas a cobrir-se, a desaparecer. Porque são mulheres.
Gostei de ler o artigo de Sarah Malik no Sydney Morning Herald sobre a proibição do burkini. Informativo, claro, expressa, com razão, a preocupação que a proibição vai empurrar as mulheres muçulmanas de volta para a margem, considerando-a "um ataque contra as comunidades minoritárias, alvo já de vigilância reforçada e assédio, que ocupam a parte inferior da hierarquia social; e os seus membros mais vulneráveis – as mulheres muçulmanas ". Como a maioria dos argumentos deste lado, no entanto, não menciona que as roupas modestas não são uma opção para muitas mulheres muçulmanas, incluindo algumas em França. Defende o direito das mulheres muçulmanas de se cobrirem, mas não se refere às mulheres muçulmanas que não desejam cobrir-se e que são obrigadas. Sarah Malik vai mais longe e afirma que para aquelas que "não se sentem confortáveis com a exibição de belos corpos exigida na praia, várias formas deste fato dão liberdade para usufruir e abandonar-se alegramente". Não é este um passo para trás? Será que vamos aceitar a imposição de um "corpo de praia" e sugerir que todos aqueles que não o têm podem optar pelo burkini, a fim de se sentirem mais confortáveis? O Presidente (muçulmano) da Câmara de Londres, Sadiq Khan, seguiu, de facto, um outro caminho, ao proibir nos transportes publicidade que envergonha os que têm corpos diferentes dos considerados “bonitos”, afirmando que "Como pai de duas adolescentes, estou extremamente preocupado com este tipo de publicidade que faz as pessoas sentirem-se rebaixadas, particularmente as mulheres, e fá-las sentirem-se envergonhadas dos seus corpos. Já é tempo disto chegar ao fim." (ler mais no The Telegraph)
(Imagem retirada do The Telegraph)
Há dois artigos recentes que ajudam a trazer algum equilíbrio na argumentação, lembrando-nos que há todo um outro lado na questão da liberdade de usar o hijab (ou o burkini): o direito de não o usar, o que não é garantido a muitas muçulmanas. O primeiro apareceu no Washington Post e intitulava-se AsMuslim women, we actually ask you not to wear the hijab in the name of interfaith solidarity. Referia-se à iniciativa do Dia do Hijab, que achei desde o primeiro momento algo estranha e de alguma forma a demonstração de alguma falta de respeito e solidariedade para com as mulheres muçulmanas oprimidas e humilhadas que não têm escolha. As jornalistas Asra Q. Nomani e Hala Arafa (que se identificam como muçulmanas “mainstream”, nascidas no Egipto e na Índia; Asra é também co-fundadora do Movimento de Reforma Muçulmana) rejeitam a interpretação de que o hijab é meramente um símbolo de modéstia e dignidade adoptado por mulheres fiéis ao Islão; recordam teólogos que já a partir do século VII e até aos nossos dias estabeleceram que as muçulmanas não são obrigadas a cobrir as suas cabeças; e, mais importante, reivindicam a sua religião e o seu direito islâmico de orar sem lenço e partilham a sua experiência de lhes ser negada a entrada à maioria das mesquitas em todo o mundo, incluindo nos Estados Unidos, sem o hijab.
O segundo artigo foi escrito por Nervana Mahmoud, comentadora dos assuntos do Médio Oriente. Em The Right not to Use a Burkini, Mahmoud relembra o seu tempo como uma jovem a crescer no Egipto. A ascensão do islamismo e a definitiva viragem conservadora nos anos 80 foram tempos em que "a pressão social aumentou, forçando as mulheres a cobrirem os seus corpos para manter a sua ‘honra’. Qualquer mulher sem lenço é considerada fácil, decadente, à procura de atenção.” O seu muito interessante artigo termina assim: "As mulheres muçulmanas que optam por usar fatos de banho comuns só querem desfrutar do simples prazer de sentir as ondas do mar a acariciar a sua pele e tocar no seu cabelo, sem julgamento externos de sua moral ou crenças religiosas. Uma vez aceite o conceito de igualdade e diversidade nos países muçulmanos, irá capacitar os muçulmanos para defender o burkini nos países ocidentais. Vamos ser francos: o preconceito, neste contexto, originou no seio das comunidades muçulmanas e nunca será resolvido até os muçulmanos realmente abraçarem a liberdade para todos, e não apenas para as mulheres que vestem o burkini." Isto vale também para os não-muçulmanos defensores da pró-escolha.
Os meus pensamentos finais vão para alguns homens e mulheres muito especiais e que fiquei a conhecer nestes últimos dias, ao ler as notícias:
(Imagem retirada do Twitter)
No Irão, homens publicam nas redes sociais fotos de eles próprios usando hijabs em protesto contra as leis rígidas que regem as mulheres. Sim, no Irão ... (ver mais no New York Times).
Massoma Muradi (imagem retirada do The National)
No Afeganistão, Masooma Muradi, a única governadora provincial do sexo feminino, continua firme, contra uma tradição patriarcal machista e apesar de ser tratada por muitos com falta de respeito (ler mais no The National).
(Imagem retirada da página de Facebook de Faduma Dayib)
Finalmente, Fadumo Dayib, que foi refugiada na Finlândia e que é hoje diplomada pelo Harvard e mãe de quatro filhos, é o primeiro candidato presidencial do sexo feminino na Somália, seu país de origem. Recebeu ameaças de morte e preparou o seu testamento para o caso de algo lhe acontecer. E afirma: "Em termos das ameaças que estou a receber, parece-me que, na verdade, são um sinal positivo de que estou a fazer a coisa certa. Como resultado do que estou a fazer, as mulheres somali deixarão de ser relegado para os quartos e obrigadas a ficar lá. Vão sair dali e nunca vão voltar." (ler mais no Identities.MIC).
Sinto profundo respeito por essas pessoas, que resistem, fazem perguntas, tiram-nos do conforto, dão-nos esperança e empurram o mundo para a frente. E que nos lembram quais são as coisas que nos unem.
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