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quarta-feira, 18 de julho de 2012

Manguinhos e o Ecomuseu


A lenda de um porco com cara de gente, uma antiga casa de música, palco de encontros e desencontros memoráveis, uma heróica e inesquecível ceia de um natal marcado pela enchente e pela solidariedade - essas são algumas das histórias que circulam pelos becos e vielas de Manguinhos e que vão virar documentários. Que outras histórias habitam esse lugar? Qual a relevância de se construir um outro discurso, quando falamos de um território extremamente estigmatizado e criminalizado? São questões que vem sendo discutidas pelo Ecomuseu de Manguinhos.

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O Ecomuseu - que hoje também é um Ponto de Cultura (Programa Cultura Viva, do Minc) - está localizado na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Faz parte da RedeCCAP, OSCIPFelipe Eugênio, coordenador do Ecomuseu presente em Manguinhos desde 1986 e conta com a parceria da Coordenadoria de Cooperação Social da Presidência da Fiocruz. Para além das relações institucionais, seus membros preferem a definição do Ecomuseu como um coletivo de mobilização do território, um instrumento comunitário que visa promover atividades de emersão da identidade e memória local.
Ao contrário do que o nome possa sugerir o Ecomuseu não existe como um museu, pelo menos não convencionalmente nas paredes e instalações de um museu, ou seja, ele não tem um prédio, nem um curador que dita o que (e como) será visto. Há uma outra perspectiva que trabalha na lógica de patrimônio imaterial da história e cultura de Manguinhos: “nossa ideia não é monumentalizar a pobreza e as tragédias de Manguinhos e sim fazer com que as pessoas construam dessas diferenças pra com uma cidade ideal, reflexões para autodeterminação do próprio horizonte de expectativas. Isso fará do Ecomuseu um aparelho cultural vivo porque reconhece cultura no trabalhar a terra, o território, trabalhar novas estéticas – e éticas ", explica o coordenador Felipe Eugênio.
Esse coletivo nasce com uma proposta desafiadora: disputar no campo simbólico e cognitivo os valores e produções de sentido sobre o território, o que Eugênio caracteriza como uma “guerrilha semiológica”, conceito desenvolvido por Umberto Eco. Que valores são esses? Quando a moradora Turia de Souza afirma “eles só veem nossa comunidade como prostituta, traficante e ladrão”, é sinal de que existe na representação sobre o morador de favela, práticas de violência. Quando a jovem Gabriela Soares não se sente retratada como pessoa, mas como marginal, - “a sociedade trata a gente como marginais. Eles não tratam a gente como pessoas, mas sim como projetos de marginais”- está claramente expressa aí uma relação de opressão que, entre outras coisas, se dá por meio da linguagem e da construção de sentido, campos que passam pela comunicação
Vista de ManguinhosNesse sentido, Felipe acredita que questionar e subverter esses valores são prioridades do Ecomuseu: “a missão do ecomuseu num território de exceção é desafiadora porque se pretende crítica e propositiva. Trata-se de imprimir novos signos num meio estigmatizado, novas referências sobre essa população local, desconstruir estigmas que legitimam o status quo; ocupar simbolicamente um espaço aparentemente esvaziado de cidadania.” Missão nada fácil, não é?  Mas como preconizava uma juventude efervescente em maio de 1968: “sejamos realistas, exijamos o impossível”.
Acreditando que outras representações são necessárias, o Ecomuseu de Manguinhos vem criando estratégias de comunicação aliando a dimensão técnica ao debate político. Desde 2011, a equipe trabalha na identificação dos atores artísticos-culturais do território, e já promoveu um curso de audiovisual em Manguinhos. Desse curso resultaram moradores que são colaboradores do Ecomuseu nesse ano, tempo no qual entra em processo a produção de 10 documentários que serão exibidos nas ruas da comunidade.
“Venha contar a história de Manguinhos”, com esses dizeres vários cartazes foram espalhados pela comunidade. O resultado foram assembleias lotadas e a equipe do Ponto de Cultura com ouvidos e gravadores a postos. Daí surgiram histórias que, entre pitorescas e engraçadas, tinham como pano de fundo as tragédias do território mas também as soluções oriundas dali mesmo, de Manguinhos.“O objetivo é trabalhar política com magia, com humor, provocar valores de cidadania por meio de uma linguagem sedutora”, afirma Felipe Eugênio.
Reinventar o território, subverter os valores que nos são impostos e empurrados goela abaixo todos os dias. Uma luta, sem dúvida, necessária e que com o trabalho do Ecomuseu se torna cada vez mais possível. São balas nada-perdidas de alto contágio ideológico. E muitas, sim, derrubam gigantes terríveis – e até seus maus disfarces de moinhos, que bons ventos não dão.

 Estudantes do curso de audiovisual em aula prática

Disputas simbólicas removem moinhos? Manguinhos e o Ecomuseu


Julho de 2012
 Renata Melo
 Publicado originalmente na Revista Vírus Planetário

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