A Harvard Books criou uma secção especial nas suas prateleiras em resposta à referência de uma porta-voz do Donald Trump a um massacre que nunca aconteceu.
Devo admitir que é com grande emoção e admiração que vejo as organizações culturais americanas a tomar posição e a criticar as políticas de seu Presidente. Alguns reagem de forma mais suave, outros assumem um tom bastante mais afirmativo e franco (vejam aqui). É uma grande lição para todos nós e, muito provavelmente, a prova de que as organizações culturais são tudo menos neutras, são, na verdade, inevitavelmente políticas.
As primeiras reações vieram no fim-de-semana logo após as eleições, com museus como o Brooklyn Museum e o National Museum of Women in the Arts a reafirmar os seus princípios e valores (ver nosso post de Novembro passado). Foi, no entanto, após a tomada de posse do novo Presidente e depois de ele assinar as suas primeiras ordens executivas, que as reações se intensificaram e se tornaram mais institucionais.
A acção que mais chamou a atenção dos meios de comunicação foi a do MoMA, que protestou contra a proibição de entrada de cidadãos de sete países maioritariamente muçulmanos substituiindo algumas das obras nas suas salas por outras, criadas por artistas originários desses sete países (ler no The New York Times). O gesto foi recebido com grande entusiasmo por muitas pessoas, com algumas delas a afirmar que é exactamente por isso que apoiam o museu, outras a decidir renovar a sua assinatura, etc. Houve, naturalmente, algumas acusações de que o museu está a servir uma agenda política em vez de ser sobre arte, mas estas foram contrariadas por pessoas que diziam que a arte é precisamente sobre isto (ver a discussão na página de Facebook do MoMA).
Mas houve mais. Além das declarações oficiais de várias associações de profissionais do sector cultural (ver no blog Museums and Migration), houve há dois dias um concerto de protesto da Seattle Symphony, Music Beyond Borders: Voices from the Seven, que apresentou música por e com músicos dos sete países afectados pela proibição. Foi um apelo muito determinado e emocional, ao qual a comunidade respondeu entusiasticamente. Alguns dias antes, uma outra orquestra, a Budapest Festival Orchestra, teve que defender um dos seus músicos com dupla nacionalidade, quando houve dúvidas se a entrada nos EUA lhe ia ser permitida. O maestro de orquestra, Ivan Fischer, "uma voz pela tolerância e a inclusão à medida que o seu país tem adoptado políticas nacionalistas e firmemente anti-imigrantes", afirmou que "nunca permitirei que alguém discrimine um músico na minha orquestra por causa da sua origem, cor da pele, religião ou qualquer outro factor." (ler no The New York Times).
Outro gesto muito significativo foi o de cinco teatros americanos terem reagido rapidamente para incluir na sua programação a peça "Building the Wall", escrita no espaço de uma semana pelo premiado dramaturgo Robert Schenkkan. "Não vivemos mais num mundo em que é business as usual- Trump deixou isso muito claro", disse Schenkkan, "e para o teatro continuar a ser relevante, temos que nos tornar mais rápidos na nossa resposta. Não podemos esperar ser úteis se não temos capacidade de reagir até 18 meses após os factos". O director artístico do Fountain Theatre, Stephen Sachs, explicou a sua decisão: "Tínhamos a nossa temporada pronta, tínhamos planeado uma outra produção, mas, assim que li o guião, percebi que tinhamos que ser rápidos. É um grito de alerta cru e apaixonado, e eu sabia que tínhamos que ser ousados e fazer essa declaração." (ler no The New York Times)
Enquanto acompanho com entusiasmo estes desenvolvimentos que têm lugar numa Democracia do outro lado do Atlântico, há uma pergunta constante no fundo do meu pensamento: E nós? Quando partilhei no Facebook um artigo sobre How museums can stand up to Trump and discriminatory policies, escrito por Robin Clarke da Universidade de Leicester, um colega perguntou-me: "Em Portugal sabemos fazer isso?". É verdade, sabemos? Estamos a fazer isso? Em Portugal, na Grécia, na Hungria e em toda a Europa?
Foi precisamente nesse momento que Nicole Deufel publicou Heritage Resistance no seu blog. E começa assim: "É óptimo ver museus, organizações ligadas ao património e organizações de profissionais a montar uma resistência contra as políticas divisivas e perigosas da nova administração Trump. E é óptimo que museus e profissionais do património, bem como instituições noutros lugares, discutam essas mesmas questões e mostrem solidariedade. No entanto, devemos garantir que, para aqueles de nós fora dos Estados Unidos, isso não se torne meramente simbólico. A proibição de imigração de Trump não se deve tornar numa outra Cruz de Lampedusa. É muito fácil fazer grandes gestos atravessando o oceano, ignorando o que está a acontecer na nossa própria porta."
Imagem retirada do website Museums and Heritage.
É este exactamente o problema. O nosso interesse pelas políticas dos EUA e pela maneira como os nossos colegas estão a lidar com elas neste momento pode ser compreensivelmente justificado pelo facto da política americana afectar a vida de todos nós. Mas a proibição de entrada a refugiados e imigrantes não é algo inédito, não é verdade? Já o vimos na fronteira húngara em Setembro de 2015; vimo-lo quando a UE assinou o seu acordo com o governo turco em Março de 2016; vimo-lo no anúncio de que o governo do Reino Unido ia construir um muro em Calais para bloquear os refugiados, em Setembro de 2016; vimo-lo no desmantelamento de The Jungle em Calais em Outubro de 2016; agora estamos a vê-lo de novo no anúncio do governo britânico que não vai acolher mais crianças refugiadas e no do governo austríaco que está a planear enviar tropas para deter o fluxo de refugiados. Vemo-lo ainda na decisão do parlamento britânico de rejeitar uma alteração que teria protegido o direito de 3,3 milhões de cidadãos da UE de permanecer no país depois de sua saída da União Europeia (e esta é provavelmente a única coisa que nós ou os nossos parentes ou amigos sentiremos na própria pele).
O que é diferente na proibição do governo americano? Nada realmente. O título deste post pergunta "E se fosse aqui?", mas a verdade é que ESTÁ aqui. Está em todo o lado à nossa volta. Como reagimos? O que é que fazemos? Não quero dizer que nada está a acontecer na Europa e que todo o mundo está a dormir o sono dos inocentes. Se há algo que aprendi com o blog Museums and Migration é o quanto está a ser feito por muitos indivíduos e instituições no sector cultural. Mas é altura de o fazermos institucionalmente. O que é diferente na proibição do governo americano é que os nossos colegas nesse país não têm dúvidas sobre o seu papel perante esta situação e estão a assumir abertamente as suas responsabilidades. Isso é o que é diferente.
fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
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