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segunda-feira, 6 de julho de 2015

série 2/5 - História e cinema: os filmes de Mazzaropi como fonte histórica.

HISTÓRIA, CINEMA E LINGÜÍSTICA

No campo das ciências humanas a linguística destaca-se como área que apresenta um vasto domínio a ser pesquisado. Muito do que as línguas podem contribuir para a compreensão do processo de desenvolvimento e construção do homem enquanto ser histórico foi por muito tempo preterido nas diversas áreas da pesquisa histórica. 



No campo da história, Roy Porter (1993) afirma que os historiadores, ao longo do desenvolvimento da disciplina, optaram por determinados recortes culturais, negligenciando a importância da linguagem devido à profunda ligação desta com a própria existência. Burke (1993) destaca a dissensão entre a sociologia, a antropologia e história, no sentido de analisar aspectos da linguagem, no contexto de determinada disciplina, adotando métodos das demais. Em meados do século XIX, a linguística passa a ser desenvolvida enquanto ciência que buscava a compreensão das línguas no processo histórico, suas mudanças e variações: O século dezenove é a era da linguística comparativa e histórica – ou seja, da busca de similaridades e diferença entre as línguas e suas relações históricas uma com as outras, e o desenvolvimento de um vocabulário científico e ferramentas para alcançar este objetivo. (FISCHER, 2009, p 198).

Contudo, a questão da linguagem foi desenvolvida por pensadores e filósofos em teorias, possivelmente desde que o homem se reconheceu como ser passível de comunicação por meio da fala. Fischer (2009) afirma que já no século VIII a.C., na Índia, houve os primeiros esforços no intuito de preservar a literatura oral hindu. O sofista Górgias de Leontinos desenvolveu no século V a.C. o Tratado do Não-ser, no qual a inexistência do ser se daria através da impossibilidade de pensá-lo e comunicá-lo. 

Pensamento que enfatiza a questão da linguagem no processo de compreensão do ser negando a existência do discurso (DINUCCI, 2008). No século IV a.C. Aristóteles observa o homem como ser dotado de fala (logos = palavra) e determina o ser humano como único capaz de, por meio desse valor, desenvolver-se socialmente e politicamente (CHAUÍ, 2003). 

Já no século XVIII, Rousseau (1997) desenvolve seu Ensaio Sobre a Origem das Línguas e afirma que “a palavra distingue os homens entre os animais; a linguagem, as nações entre si”. A linguística se divide em campos voltados à compreensão das formas de expressão da linguagem através da oralidade ou da escrita, e assim busca estruturar os estudos a fim de determinar diferenças, padrões, estruturas, combinações e significados das palavras, assim como estilos de linguagem, aplicação de oralizações, o conjunto de palavras de um idioma e a análise de textos de línguas antigas. Neste sentido a linguística vai além de uma compreensão estritamente social da linguagem, e oferece às demais disciplinas diversas possibilidades de estudo, os quais contribuem para a construção de novas abordagens. 

Neste sentido, Burke (1993) afirma que nas últimas décadas, revelou-se, a partir da convergência das disciplinas, a aproximação de um modelo voltado aos estudos das características históricas, culturais e sociais da linguagem: Antropólogos e sociólogos voltaram-se para o passado a fim de explicar de maneira mais completa os desenvolvimentos que observam no presente, ao passo que os historiadores ampliaram seu campo de investigação para incluir nele a vida cotidiana das pessoas comuns. (BURKE, 1993, p 10).

A partir da convergência entre as disciplinas busca-se elaborar uma metodologia que favoreça o estudo da linguagem no âmbito da história adequada a superar a limitação de um estudo voltado à compreensão de como a linguística se desenvolveu enquanto ciência, e determine a forma como as línguas foram construídas no decorrer do processo histórico. A partir deste contexto é desenvolvida uma abordagem interdisciplinar, que reúne aspectos da linguística e da sociolinguística, e que possa determinar as variações na linguagem e suas respectivas ligações com as mudanças no processo histórico, aproximando-se do que pode ser denominada uma história social da linguagem (NASCIMENTO, 2003). 

Portanto, a compreensão do processo de construção das línguas é fundamental para a construção do conhecimento histórico, e é um recorte que oferece subsídios relevantes a uma abordagem social e cultural da história. Baseado nos conceitos linguísticos, em busca de desenvolver o conceito de história social da linguagem, Peter Burke desenvolveu algumas obras voltadas a essa questão. 

Em seu artigo, que contempla os diferentes usos do latim no período pós-medieval, Burke (1993) relaciona o uso da língua ao contexto social da época. O historiador atribui à língua falada de diferentes formas em diferentes estratos sociais o poder de instrumento de divisão social profundamente associado à produção e construção da cultura, que apartava mulheres e plebeus da elite cultural masculina e erudita.

Uma vez que a língua está ligada à cultura, esta também está sujeita ao processo de transformação constante que a perpassa. Assim, dotada de certa maleabilidade, a língua experimenta transformações no decorrer do processo histórico, particularmente com as mudanças que ocorrem no meio social e no espaço de difusão do idioma. Para Joyce (1993), a linguagem é importante fator na construção social das identidades coletivas e individuais. Seu estudo sobre os dialetos das classes populares inglesas e a produção literária em dialetos revela a linguagem como elemento fundamental, gerador de conflitos ou entendimentos, que aproxima ou afasta classes sociais.

Ainda segundo Joyce, com a adoção de um modelo educacional obrigatório na Inglaterra do século XIX, houve uma prematura determinação da morte dos dialetos, porém, a linguagem utilizada por populares, tida como inculta e vulgar, persistiu ainda no processo de ensino-aprendizagem e levou ao maior sucesso do modelo educacional em locais onde os dialetos sobreviveram e foram incorporados ao modo de ensinar. Neste contexto destaca-se a relação entre pensamento e linguagem, observada no processo histórico. Segundo Vygotsky (2000), o desenvolvimento do pensamento está associado à obtenção da fala e da associação das palavras com a realidade.

Burke (1993) afirma que o ato de pensar ocorre em determinada língua. Portanto, no processo apresentado por Joyce, o sucesso da aprendizagem se deveu ao fato de que, internalizados os dialetos, a aprendizagem tornar-se-ia mais satisfatória com a adoção de um modelo educacional no qual a língua materna fosse incorporada. 

A linguagem analisada no contexto da conquista e dominação é apresentada por Kiernan (1993) que discorre a respeito das línguas no processo de formação das grandes civilizações e impérios. Assim como qualquer produção histórica do homem, novas línguas surgem com o passar do tempo e outras estão fadadas ao desuso ou total desaparecimento. Segundo Kiernan, a conquista de territórios por impérios e civilizações é um fator crucial no processo de aquisição e construção de novas linguagens.

Os historiadores, por via de regra, prestam pouquíssima atenção às maneiras de falar dos povos sobre os quais eles escrevem. Mas a guerra e a conquista, pode-se dizer, têm sido os mais poderosos árbitros dos destinos das línguas humanas. (KIERNAN, 1993, p 259-260).

No processo de conquista de povos e territórios, a colonização e migração compulsória de grandes comunidades ocasionavam uma aproximação entre línguas distintas, segundo Kiernan, “quando duas delas são colocadas em contato estreito à força, sempre influenciam uma a outra em algum grau” (1993, p 259). Neste processo o embate em busca da hegemonia de apenas uma língua acarretava alguns fins possíveis: a) a imposição da língua do dominador; b) a adoção da língua do dominado; c) a miscigenação e construção de uma nova língua.

É necessário levar em consideração que devido a não rigidez que a linguagem apresenta um dos fatores não eliminaria os demais, ou seja, mesmo que o idioma do dominador se impusesse o surgimento de novos dialetos não estaria descartado, assim como a presença de comunidades mais conservadoras levaria à preservação do idioma do dominado. Kiernan ainda destaca o papel da mulher neste processo, como salvaguarda e transmissora das línguas aos descendentes.

Direcionada aos estudos da linguagem em relação à cultura, visando estabelecer o processo de construção da norma culta no Brasil no período entre 1920 e 1930, Silva (1999), afirma que qualquer estudo que busque estabelecer o desenvolvimento histórico de determinada língua é possivelmente influenciado por interesses sociais do grupo a ser estudado. Neste sentido, trabalhos voltados à compreensão dos modos pelos quais a linguagem se constrói no processo histórico visariam à ocultação de ideologias, contradições e conhecimentos, no intuito de revelar apenas pareceres positivos em relação ao objeto de estudo. Silva justifica este ponto ao afirmar que tais abordagens buscam apresentar o cunho social da linguagem, não se atendo ao fato de a linguagem tratar-se também de um processo natural e cognitivo, no sentido de que tais abordagens também estão inseridas no processo social que procuram delimitar.

As distinções entre natureza e cultura, palavra e mundo material, sustentam princípios e concepções que buscam descrever e decompor as formas fixas da língua para estabelecer hierarquias entre diferentes línguas – entre as variações de uma mesma língua usada por diferentes grupos sociais -, entre as várias modalidades de língua e, por último, definir padrões de normalidade e patologia. (SILVA, 1999, p 40) Kiernan, em uma inferência sobre a origem das civilizações, afirma que a desnecessidade de promover esforços para criar novas línguas voltou os homens para a construção das civilizações. De fato, o processo de construção das línguas, que reflete os esforços do homem no intuito de estabelecer a comunicação, marcou profundamente o processo social e histórico no sentido de estar tão intrinsecamente ligado a todo o processo, estabelecer influências e determinar acontecimentos, que se torna indispensável à análise histórica e sociocultural da linguagem no sentido de compreender o processo de construção do próprio homem.


fonte: @edisonmariotti #edisonmariotti
produção bibliográfica de Giselle Gubernikoff

continuação: dia 08/07/2015 as 12:00hs série 3/5 


Giselle Gubernikoff
Possui o 1o. Ano de Jornalismo pela Fundação Armando Álvares Penteado (1971), graduação em Artes/Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1976), mestre em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1985), doutora em Artes/ Cinema pela Universidade de São Paulo (1992), livre-docência em Ciências da Comunicação/ Publicidade pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo(2000). Professora Titular pela ECA USP em Artes Visuais/Multimídia e Intermídia na especialização Fotografia, Cinema e Vídeo (2002). Atualmente é professora titular do Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Audiovisual/ Cinema, com ênfase em Produção, Roteiro e Direção Cinematográficos, atuando principalmente nos seguintes temas: mídias digitais e novas tecnologias de comunicação, linguagem cinematográfica, produção audiovisual, cinema publicitário, representação feminina, cinema brasileiro, cinema e consciência cultural e museologia e mídias digitais.
(Texto informado pelo autor)

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